O escritor do livro sagrado

Os críticos literários de Portugal, sabidamente, aproveitam a proximidade físico-cultural de que dispõem com seus colegas de outros países europeus de línguas neolatinas para, através de um permanente diálogo com eles, refinarem seus instrumentos de análise de obras de poetas e escritores daquele país.

E do Brasil.

É esta condição privilegiada deles, mais do que propriamente uma superioridade permanente de qualidade nos seus estudos, o que parece provocar certa arrogância dos críticos portugueses, em relação a seus colegas brasileiros, como pode notar quem tiver a oportunidade de realizar alguma pesquisa em Portugal, neste campo.

No entanto, um brasileiro terminou se impondo como um criador de textos originalíssimos, no sofisticado ambiente da crítica literária portuguesa.

Por ironia, um brasileiro provindo de uma região – o Norte – discriminada dentro do próprio Brasil.

Seu nome: Vicente Franz Cecim.

O livro de Cecim “Ó Serdespanto” foi considerado como a segunda obra mais importante do ano, quando foi lançada em Portugal.

Pode-se medir o impacto que o paraense causou naquele país no tom – um tanto brusco – adotado pela escritora Regina Louro, na resposta que deu a uma parte do comentário sobre o livro de Cecim feito pelo crítico Eduardo Prado Coelho, no jornal “Público”, de Lisboa.

O que estabeleceu um diálogo meio ríspido entre duas celebridades da cultura de Portugal.

Ela, autora de uma dezena de obras, entre as quais dois romances, além de tradutora para o português de outra dezena de livros de escritores franceses, italianos e espanhóis.

Ele, detentor do Grande Prêmio de Literatura Autobiográfica da Associação Portuguesa de Escritores, professor de Estudos Ibéricos, na Universidade de Sorbonne, conselheiro cultural da Embaixada de Portugal, em Paris, onde também presidiu o Instituto Camões.

Curiosamente, Prado, na verdade, derramou-se em elogios ao livro de Cecim.

Classificou-o como “uma revelação extraordinária”, destacando “a perturbação, os momentos de arrebatamento que nos podem vir” dele.

Ele escreveu ainda que, naquele livro, “o pensamento liberta-se dos seus lastros terrestres e ganha um estatuto de ave, uma leveza de princípio do mundo, uma sageza do fim dos séculos, uma inocência dos extremos”.

E que aqueles seus textos “oscilam entre uma espécie de deliberada monotonia do ser e o sentido golpeante das cintilações verbais”

O que, porém, Regina Louro não admitiu nos comentários de Prado, foi ele ter concluído, depois de assinalar tantas qualidades no livro de Cecim, que “ÓSerdespanto” é uma obra “inclassificável”.

Isto foi o bastante para provocar a ira de Regina Louro. Também no jornal “Público” ela respondeu que considerava aquela obra “um livro total, na sua fusão de poesia, prosa, viagem utópica, divagação onírica, pensamento filosófico, reinvenção da palavra e reinvenção do mundo”.

E, adiantou:

– Há um nome para esta espécie – rara – de acontecimento, mas é um nome ousado e, nestes tempos de suspeita, pronto a ser banido: estamos perante um livro sagrado.

Por fim, com contundência, concluiu:

– Chamar-lhe de inclassificável é, talvez, covardia.

  • Oswaldo Coimbra é escritor e jornalista

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