BYD passa a vigiar funcionários após denúncia de maus tratos a operários chineses na Bahia

A BYD, líder global na produção de carros elétricos, passou a vigiar os funcionários brasileiros que atuam na instalação da fábrica na Bahia desde que a Agência Pública divulgou que operários chineses foram vítimas de maus tratos e agressões físicas dentro da planta da obra, mostra nova denúncia exclusiva.

De acordo com informações obtidas pela reportagem, a empresa instalou câmeras de filmagem nas áreas administrativas e nos galpões de obras e fixou cartazes proibindo expressamente que fotografias fossem tiradas nestes espaços.

Além disso, segundo a denúncia, foi instalado um programa de computador que cria uma marca d’água com nome de cada funcionário para identificar de que máquina partiu materiais compartilhados com o público externo.

Para informar esse programa, a BYD enviou um e-mail no dia 18 de dezembro do ano passado, ao qual a reportagem teve acesso, explicando as novas diretrizes adotadas.

Na mensagem, a empresa informa que a instalação foi feita pelo “departamento de Tecnologia da Informação da China”, e que “essa marca informa o nome do usuário logado no equipamento, nome do equipamento e a data atual”. A empresa explicita claramente que “essa medida visa evitar possíveis vazamentos de informações”.

Todas estas ações começaram a ser implementadas logo após a Pública divulgar com exclusividade, em novembro do ano passado, a denúncia de que operários trazidos da China estavam sendo submetidos a condições precárias de trabalho, vivendo em alojamentos sujos, aglomerados e mal iluminados. 

Com relatos, imagens e vídeos, a reportagem mostrou que muitos operários atuavam sem equipamentos de proteção individual, submetidos a rotinas de 12 horas por dia, sofrendo agressões físicas em caso de descumprimento de ordem ou atraso no prazo da obra.

Por que isso importa?

  • A fábrica da BYD é a primeira da empresa no país, teve um investimento anunciado de R$ 3 bilhões e é um dos principais projetos do governo estadual.

No dia 23 de dezembro, menos de um mês após a denúncia, o Ministério Público do Trabalho (MPT) resgatou 163 operários chineses, contratados pela empresa Jinjiang Group – uma das três terceirizadas da China que a BYD fechou parceria para montagem da fábrica na cidade baiana de Camaçari, pólo industrial do estado.

Além das péssimas condições para o exercício do trabalho, o MPT identificou que os operários estavam sendo submetidos a condições análogas à escravidão, com passaporte e parte do salário retidos pela Jinjiang. Cerca de 60% dos proventos eram confiscados e o restante pago em moeda chinesa para evitar o abandono do emprego.

O setor de terraplanagem (preparação do terreno para a obra), ao qual a Jinjiang era responsável, foi completamente embargado pelos auditores do MPT – situação que ainda persiste.

A situação chegou a levar o governo brasileiro a suspender a emissão de vistos de trabalho temporários para a BYD no final de dezembro.

Procurada para explicar a instalação das câmeras e do programa que identifica o perfil dos usuários, a BYD disse, em nota, que “medidas relacionadas à proteção de segredos industriais são práticas comuns e essenciais em indústrias de ponta, especialmente para empresas líderes em inovação tecnológica”. 

A empresa informou ainda que essas ações “refletem a responsabilidade de proteger ativos estratégicos e são adotadas de forma consistente, respeitosa e dentro da lei”, refletindo a “responsabilidade em preservar a integridade de nossas operações”, uma vez que a BYD diz solicitar, em média, “45 patentes por dia útil”.

Na nota, a BYD não explicou por que só passou a adotar tais “medidas de proteção industrial” logo após as denúncias sobre maus tratos aos operários chineses virem à tona, já que a empresa começou as obras na Bahia em março do ano passado.

Caças às bruxas na fábrica chinesa

Esse posicionamento da BYD de vigiar os funcionários na tentativa de evitar novos vazamentos de possíveis irregularidades contrasta diretamente com o discurso público adotado pela empresa, desde que as denúncias vieram à público. 

Após ação do MPT, a montadora chinesa informou, por nota, que “não tolera desrespeito à lei brasileira e à dignidade humana”. E, diante disso, “decidiu encerrar imediatamente o contrato com a Jinjiang”. Leia a nota na íntegra.

A BYD anunciou que os 163 operários resgatados foram levados de volta para casa e receberam os valores que lhes eram devidos em contrato.

Nos bastidores, a BYD instalou 135 câmeras em vários espaços – em muitas ocasiões, mais de um aparelho no mesmo cômodo.

Pessoas ouvidas pela reportagem citaram um clima de “caça às bruxas” para tentar descobrir e punir os supostos responsáveis, mesmo sem qualquer tipo de comprovação de que o material da primeira reportagem tenha partido de funcionários da BYD.

Um escritório jurídico de São Paulo, a Urbano e Vitalino Advogados, foi designado para dar suporte durante a crise. Em nota, a BYD disse que o escritório já prestava serviços para a BYD anteriormente e tem “colaborado nas questões relacionadas às empresas contratadas para realizar as obras em Camaçari”.

Segundo a reportagem apurou, jornalistas da FSB – uma das maiores agências de assessoria do Brasil – desembarcaram na Bahia para reforçar o time de atendimento à imprensa neste período.

Em dezembro, com ajuda de tradutores chineses, o presidente da BYD no Brasil, Tyler Li, conversou com os funcionários brasileiros, quando teria reforçado a importância do empreendimento no Brasil.

Segundo os relatos, ele teria garantido que os funcionários brasileiros que trabalhavam na parte administrativa da Jinjiang – e não sofreram maus tratos e agressões – não perderiam seus empregos com o fim do contrato com a empresa chinesa, mas isso acabou não acontecendo. Parte dos funcionários já estariam de aviso prévio e vão deixar a obra em fevereiro.

Em nota, a BYD disse que os colaboradores brasileiros da Jinjiang serão considerados em um processo seletivo conduzido pela equipe de Recursos Humanos da empresa. E, os que atenderem aos requisitos dos cargos disponíveis, “serão integrados ao time”. 

A BYD disse que está comprometida com o Brasil e com Camaçari – e tem o intuito de transformar a cidade baiana no “Vale do Silício da América do Sul”.

Governador da Bahia e prefeito defendem BYD

Na semana em que a Pública divulgou a denúncia de maus tratos aos trabalhadores, o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), participou de um evento na planta de obras da BYD. A cerimônia já estava marcada antes mesmo da publicação da reportagem.

Indagado por jornalistas sobre a atuação da empresa, Rodrigues se limitou a dizer que confia na BYD, citando o histórico do seu partido em defesa do trabalhador.

“Nós somos um governador e um presidente de classe operária. Uma classe rural, oriundos de famílias pobres que sabem muito bem o que significam boas condições de trabalho”, disse, na ocasião.

Neste mesmo evento, o ministro da Casa Civil, e ex-governador da Bahia, Rui Costa (PT), também esteve presente, mas não falou com a imprensa.

No mesmo mês, o prefeito de Camaçari, Luiz Caetano, também do PT, saiu em defesa da empresa, dando a entender que há interesses de concorrentes para desgastar a imagem da BYD.

“Obviamente que o que tem de errado tem que ser corrigido, os direitos dos trabalhadores são invioláveis. Tanto assim que [a BYD] já retirou a empresa. Foi rápido. (…) A ação da BYD aqui dentro é uma revolução da tecnologia para o estado da Bahia e do Brasil. Ela [a BYD] está invertendo o gráfico da produção industrial de automóveis e, obviamente, os concorrentes, vão para cima para tentar desgastar”, afirmou.

O governador Jerônimo e o presidente Lula têm tratado a instalação de uma fábrica da BYD no estado como parte de uma estratégia de aproximação com os chineses, fortalecendo a empresa no mercado nacional e fazendo frente à Tesla, do bilionário de extrema direita Elon Musk, principal concorrente na produção de carros elétricos.

O terreno onde a empresa chinesa está construindo sua fábrica em Camaçari foi da Ford por quase 20 anos. Isso até 2021, quando a montadora dos EUA decidiu encerrar sua produção de automóveis no Brasil. 

O governo baiano, então, resolveu comprar o terreno de 4,6 milhões de metros quadrados e revender a BYD pelo valor de R$ 287,8 milhões, como forma de atrair a instalação da primeira fábrica de carros elétricos no país.

A montadora chinesa estima produzir 300 mil carros por ano no Brasil e diz que tem potencial de gerar “mais de 20 mil empregos”.  

Adicionar aos favoritos o Link permanente.