Falácia da meritocracia: igualdade de oportunidades ainda é uma ilusão

A recente declaração de Donald Trump, em seu último discurso antes da posse presidencial, revela mais uma tentativa de atacar políticas de diversidade, equidade e inclusão (DEI). O presidente dos Estados Unidos defendeu a revogação de ordens executivas anteriores que incentivavam ações afirmativas, sob o argumento de que o mérito individual deve ser o único critério para o progresso social e profissional. Essa posição, que aparenta defender a meritocracia, ignora as profundas desigualdades estruturais que moldam a sociedade americana e, de forma mais ampla, o mundo.

O conceito de meritocracia, embora pareça justo e racional, não é tão simples em sua origem e aplicação. O termo surgiu na obra The Rise of the Meritocracy, de Michael Young, publicada em 1958. O livro, na verdade, era uma sátira que criticava a ideia de que uma sociedade baseada exclusivamente no mérito seria justa. No entanto, a interpretação do termo foi deturpada, sendo usada como um modelo ideal de organização social. Historicamente, elementos meritocráticos começaram a ser defendidos após a Revolução Francesa, quando Napoleão Bonaparte tentou substituir privilégios hereditários por sistemas baseados em habilidade e esforço. Contudo, mesmo nesse contexto, as elites econômicas e culturais continuaram a dominar, provando que a meritocracia nunca operou em condições verdadeiramente igualitárias.

Na prática, a meritocracia falha em sociedades desiguais porque o ponto de partida das pessoas não é o mesmo. Em países como os Estados Unidos e o Brasil, onde questões como raça, gênero e classe social desempenham um papel significativo na distribuição de oportunidades, o discurso meritocrático serve mais como uma justificativa para manter privilégios do que como um meio de redistribuição justa. Quem realmente prospera em sistemas alegadamente meritocráticos não são os mais capazes, mas os mais favorecidos. Esses indivíduos possuem acesso a educação de qualidade, saúde, redes de contato e estabilidade financeira desde cedo, enquanto outros lutam para superar barreiras quase intransponíveis.

O caso das ações afirmativas e das políticas de DEI é emblemático. Tais iniciativas não criam privilégios para minorias, como críticos como Trump alegam, mas tentam corrigir o desequilíbrio histórico que impede a ascensão de grupos marginalizados. Sem essas políticas, a meritocracia se torna apenas uma fachada. Não é razoável esperar que uma criança que cresce em uma comunidade desfavorecida, frequentando escolas públicas subfinanciadas e enfrentando preconceitos diários, tenha as mesmas chances de sucesso que outra criada em um ambiente de abundância e apoio. No entanto, o discurso de Trump desconsidera essas desigualdades estruturais, tratando o mérito como se ele existisse em um vácuo, independente de fatores sociais e econômicos.

Em sociedades profundamente desiguais, o mérito é frequentemente confundido com privilégio. Quem ocupa os lugares de poder e prestígio geralmente são aqueles que já tinham acesso às maiores oportunidades. Esses indivíduos não apenas começam a corrida muito à frente, mas também dispõem de melhores ferramentas e condições para vencer.

A meritocracia, como conceito, seria um ideal justo se todas as pessoas tivessem igualdade de condições desde o nascimento. Mas em uma realidade onde o capital financeiro, social e cultural é distribuído de forma tão desigual, ela se transforma em um instrumento que perpetua desigualdades, legitimando a dominação de elites sob o pretexto de esforço individual. Nesse cenário, o discurso de Trump não é apenas equivocado; ele é perigoso, porque reforça a falsa narrativa de que o mérito é uma solução neutra e justa. Isso desvia o foco das discussões sobre desigualdade e torna mais difícil implementar as mudanças estruturais necessárias para criar uma sociedade mais equitativa.

A verdadeira justiça social só pode ser alcançada quando reconhecemos que meritocracia e desigualdade são incompatíveis. A ideia de “vencer pelo mérito” é ilusória em um contexto em que as barreiras iniciais são tão grandes para uns e quase inexistentes para outros. É essencial continuar investindo em políticas que nivelam o campo de jogo, como as ações afirmativas, a ampliação do acesso à educação de qualidade e a promoção de ambientes de trabalho mais inclusivos. Só assim será possível aproximar-nos de uma sociedade que valorize verdadeiramente o mérito, sem que ele seja condicionado por privilégios históricos ou econômicos.

Trump, ao atacar as políticas de diversidade e inclusão, ignora que sem elas, a meritocracia continua sendo um conceito que beneficia poucos e exclui muitos. É hora de enfrentar a realidade: em uma sociedade desigual, meritocracia não é justiça, é manutenção de privilégios.

Quando se é herdeiro, falar sobre meritocracia soa, no mínimo, incoerente.

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