Ditadura: certidões de óbito de 4 desaparecidos no DF serão corrigidas

Era uma manhã na década de 1970 quando militares vestidos de civis entraram na casa de uma família de classe média e levaram o patriarca. Após a saída do chefe do lar pela porta, ele nunca mais foi visto, e sua mulher e filhos deram início a um luto sem fim em busca de explicações.

O trecho acima poderia ser um resumo do início do filme “Ainda estou aqui”, que relata o drama vivido pela família Paiva após o desaparecimento do ex-deputado Rubens. No entanto, a história se deu em outro núcleo familiar: os Alcântara.

Assim como Eunice Paiva, Elza Souza de Alcântara foi surpreendida dentro de casa. Aquela manhã de 13 de fevereiro de 1970 foi a última vez que Abelardo Rausch de Alcântara, 42 anos na época, foi visto. O casal tinha três filhos que não puderam se despedir do pai.

A Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, durante a ditadura, alegou que Alcântara teria tentado se suicidar cortando o pulso e ingerindo produto de limpeza, mas, enquanto recebia o imediato socorro dos militares, o carro do Exército sofreu um acidente e só ele foi a óbito.

Quase 52 anos depois do desaparecimento, a família terá a certidão de óbito corrigida. Assim como o de Rubens Paiva, o novo documento vai deixar claro que ele foi assassinado em uma morte violenta, não natural e causada pelo Estado brasileiro.

Paiva e Alcântara são apenas duas das 434 vítimas da ditadura militar que terão certidões corrigidas. No Distrito Federal, são quatro pessoas. Conheça as histórias de cada uma delas e veja abaixo o mapa das novas emissões.

Certidão Rubens Paiva com antes e depois da retificação

Acidente de carro forjado

A Comissão Nacional da Verdade conseguiu provar que os militares forjaram um acidente de carro para justificar a morte de Abelardo Rausch Alcântara. No entanto, ele foi morto após inúmeras sessões de tortura.

Os militares trajando terno e gravata que entraram na casa da vítima disseram ser funcionários da Caixa Econômica Federal, empresa em que Alcântara trabalhava como bancário. Ele teria sido convocado, segundo os militares informaram à sua esposa, para prestar informações sobre um roubo na agência de Taguatinga em que era tesoureiro.

Nessa época, Aberlardo havia sido membro atuante da Associação de Funcionários da Sociedade de Abastecimento de Brasília. A possível participação em uma associação de trabalhadores foi o suficiente para Abelardo ser convocado pela ditadura.

A versão da Segurança Pública informou que ao ser confrontado com a suspeita do roubo, Abelardo se exaltou, quebrou um copo, usou os cacos para cortar os pulsos e ingeriu lisoform para se matar. A SSP ainda disse que tentou fazer o socorro, mas que o carro teria sofrido um acidente contra um veículo da Secretaria de Governo do DF próximo ao Palácio do Buriti.

Foto preto e branco
Aberlardo Rausch de Alcântara morto em 1973

Abelardo teria morrido pelas lesões provocadas no acidente, segundo a versão oficial da época. Para a CNV essa versão não se sustenta e ainda apresenta contradições. Além dos hematomas típicos de ações de tortura na época, um dos pontos é que o próprio registro do acidente ocorrido em frente ao Palácio do Buriti sequer faz menção a Abelardo Rausch. Ou seja, o documento que registra os envolvidos e vítimas não mostrou que o bancário estava presente no veículo.

A esposa de Abelardo só foi avisada da morte por conhecidos. Elza contou que uma vizinha havia sido informada do velório de Abelardo na capela nº 1 do Cemitério Campo da Esperança, em Brasília. Ao chegar no local, Elza viu o marido com hematomas, marcas de queimadura, feridas variadas, o braço esquerdo quebrado e o rosto estava inchado e enfaixado.

Horas antes um militar tinha entrado na casa de Elza e pedido por roupas de Abelardo. Ele teria informado que o bancário estava ainda prestando depoimento na delegacia de Taguatinga e que sairia de lá direto para o trabalho. As investigações, contudo, apontam que ele teria sido torturado até a morte no Pelotão de Investigações Criminais do Exército (PIC).

Restos mortais 43 anos depois

Epaminondas Gomes de Oliveira era um camponês maranhense interessado por política. No final da década de 1950, ele se tornou militante do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT). Por sua atuação, acabou sendo alvo da Operação Mesopotâmia, ação secreta realizada pelo Comando Militar do Planalto com o apoio do Centro de Informações do Exército (CIE).

O camponês foi preso em 7 de agosto de 1971, no garimpo de Ipixuna (PA), e levado para Marabá (PA) por militares.

Foto preto e branco de homem de cabelo curto
Epaminondas Gomes de Oliveira desaparecido em 1971

A família de Epaminondas não conseguiu mais contato com ele, passou por torturas psicológicas e teve sua residência vigiada por agentes da repressão.

De acordo com o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), após torturas sofridas no PIC, em Brasília, o homem morreu em 1971. A família, entretanto, só conseguiu se despedir de Epaminondas em 31 de agosto de 2014, quando os restos mortais foram devolvidos.

Falso suicídio

Henrique Ornellas era advogado criminalista formado pela Universidade de São Paulo (USP) e respeitado na profissão. Viúvo, ele morava com os dois filhos no Paraná, quando agentes do Estado invadiram sua casa dizendo que ele seria membro de uma quadrilha de assaltantes.

Os militares vasculharam sua casa por seis horas e mantiveram os filhos em um quarto sob a mira de armas. Henrique foi levado algemado e encapuzado para Brasília por um avião da Força Aérea Brasileira (FAB).

Cinco dias após ser levado à força, em 21 de agosto de 1973, o advogado foi encontrado em uma cela pendurado no basculante da janela do banheiro por três gravatas pretas e um cinto preto, trajando o mesmo pijama que estava no momento de sua prisão, contendo um maço de cigarros, um medicamento que havia sido receitado por um médico na prisão, uma toalha mofada e um par de alpargatas.

Foto preto e branco de homem de cabelo curto e bigode
Henrique Cintra Ferreira de Ornellas morto/desaparecido em 1973

A ditadura disse que ele morreu de “asfixia por enforcamento, com fortes indícios de suicídio”e concluiu que não havia nenhum crime ou transgressão disciplinar a apurar.

Quarenta anos depois, foi possível investigar e desconstruir a falsa versão dessa história. A partir de documentação da época e fotografias da vítima, a CNV concluiu a inexistência de enforcamento e, assim do suicídio. Henrique foi assassinado por agentes estatais que orquestraram uma cena para dissimular as causas reais da sua morte.

A partir deste ano, o advogado terá finalmente registrada a violência de militares brasileiros como a causa de sua morte.

Repressão

Anos antes, a repressão já tinha feito outra vítima no DF. O estudante Ari Lopes de Macedo morreu na Delegacia de Polícia Federal, em Brasília, após ser preso no Pará. Novamente, as informações divulgadas pelas autoridades indicavam suicídio como causa.

No entanto, laudo posterior constatou a presença de inúmeras equimoses e escoriações no corpo da vítima. As lesões descritas poderiam tanto ter sido ocasionadas por “impacto contra o solo” quanto pelo “processo desumano, execrável e cruel de aliciamento para a obtenção da confissão”.

Familiares até tentaram denunciar o caso à Assembleia Legislativa do Pará, mas um novo inquérito policial para apurar as circunstâncias do assassinato e responsabilizar os seus autores nunca foi aberto.

Ari é a quarta pessoa morta em solo brasiliense que terá sua certidão de óbito retificada pelos cartórios brasileiros. Ao todo, 434 documentos serão alterados, sendo 393 no Brasil, 27 no exterior e 14 em locais indefinidos. Os dados são da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). Veja o mapa:

Certidões

“Quando a gente está falando de retificação de óbito, ajuda a quebrar esse silêncio e expor as violações do regime, de deslegitimar narrativas que são construídas pela ditadura e que no tempo presente a gente tem sentido um aumento”, explicou a coordenadora coordenadora de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog, Lorrane Rodrigues .

A pesquisadora reforçou que a ditadura militar conta com aparatos do Estado, que não só os militares, mas que são contribuintes a uma narrativa, como as instituições de perícia. “Com esse movimento da retificação, corrige-se uma narrativa falsa que é imposta pelo Estado ao substituir essas versões de suicídio ou de acidentes por declarações que refletem a realidade dos assassinatos e das torturas”, completou.

“Quando a gente está falando, por exemplo, de fazer uma retificação de certidão de óbito, a gente está falando de uma série de impactos que talvez os impactos na vida dessas famílias, impactos psicológicos como em caso de desaparecimento, no direito ao luto desses familiares e outros reflexos”, concluiu.

Veja entrevista:

O vice-presidente do Operador Nacional do Registro Civil, Gustavo Renato Fiscarelli, destacou que a retificação das certidões tem papel reparador ao devolver às vítimas sua verdadeira história e aos familiares a possibilidade de encerrar um ciclo de dor e invisibilidade.

“Esse processo de correção e emissão de novas certidões de óbito é um passo fundamental para o resgate da memória e da dignidade das vítimas da ditadura militar. Ele garante que os registros oficiais reflitam a verdade histórica, permitindo que os familiares acessem seus direitos de reparação e que a sociedade como um todo reconheça essas violências de Estado”, afirmou.

A mudança atende a uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 13 de dezembro do ano passado. Aprovada por unanimidade, a medida determinou aos cartórios do Brasil a retificação de mortos e de desaparecidos na Ditadura Militar.

Os familiares receberão gratuitamente as certidões de óbito de seus parentes atualizadas, conforme determinado pela Resolução 601/2024 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

A entrega dos novos documentos deverá ocorrer em fevereiro, quando os cartórios já tiverem encaminhado os documentos atualizados ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC).

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