Com Trump, é mais difícil criticar Xi ou Putin (Por Manuel Carvalho)

Dificilmente alguém que passou a vida no jazz ou nos blues e a apreciar a democracia da América seria capaz de receber a notícia do triunfo da chinesa DeepSeek sobre as grandes tecnológicas americanas na inteligência artificial com um convicto “bem feito!”. Donald Trump está a ter o saudável condão de nos irritar e o perigoso efeito de nos afastar de uma ideia poderosa e mobilizadora: a da democracia radicada na prosperidade. No seu regresso, está a cumprir todas as ameaças e a cada passo que dá os Estados Unidos degradam a poderosa imagem que lhes garantiu um lugar único na cultura do Ocidente. Não admira que comecem a germinar a dúvida e o desencanto que põem em causa princípios e convicções. Xi Jinping é um autocrata e Trump não é? O regime de Pequim viola direitos humanos e o projeto de Trump não? Vladimir Putin manifesta uma visão imperialista sobre os países vizinhos e o Presidente norte-americano não faz o mesmo?

Todos os que gostam da América aprenderam a embrulhar essa paixão no leque das suas imensas contradições. A América é o país do dinheiro e dos ricos, mas é também o país das oportunidades. É o país do egoísmo, mas é também o país da filantropia e das causas humanitárias. É o país do racismo e das leis de Jim Crow, como é a pátria de Martin Luther King ou dos Black Panthers. É o país dos negócios de bastidores, do complexo militar-industrial, mas é também o regime dos juízes independentes e corajosos e da imprensa livre. É um país com tendências isolacionistas, que desde a fundação se sente no dever de servir de farol a causas como a democracia ou a liberdade. É um país da cultura de plástico, mas onde sempre houve margem para a criação de estupendos romancistas, historiadores ou arquitetos.

Não é ainda hora de nivelar o mundo por baixo e dizer que a América deixou de ser uma força do bem e passou para o eixo do mal. O equilíbrio de poderes está ameaçado, é certo, pelas nomeações para as instâncias judiciais de Donald Trump ou pela subserviência que os magnatas manifestaram ao novo dono do poder. O progressismo está paralisado pelos excessos da cultura woke que destruíram pelo medo das palavras o debate público e as agendas das universidades. Mas o espírito da América, temos de acreditar, não morreu ainda. De Washington às profundezas da América, haverá juízes, jornalistas, funcionários, académicos, religiosos, ativistas que prometem fazer a vida negra a todas as tentativas de ataque aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Com base nessa crença, que sentido faz celebrar uma derrota da América perante a China num caso como o do DeepSeek? É um erro reagir ao que vem da América como se tudo se resumisse a decisões do seu presidente. Mas tudo tem um limite. Custa muito ver a Dinamarca a falar baixinho quando a sua soberania sobre a Groenlândia está ameaçada. Custa ver a Colômbia abdicar da exigência do cumprimento de direitos humanos nos deportados com medo das represálias comerciais. Custa assistir à resignação com que a União Europeia assiste aos insultos quase diários do presidente de um país que ainda é seu aliado. O ministro dos Negócios Estrangeiros da França saiu desse insuportável silêncio ao lembrar a Trump que “as fronteiras da União Europeia (UE) não são negociáveis”, e que, se a Dinamarca pedisse, estava disposto a enviar tropas para a Groenlândia. A França “eterna” não se verga.

Na sua caminhada para a unidade com Xi Jinping, Viktor Orbán e Vladimir Putin, Trump e a sua América precisam de ser contestados e afrontados. A única linguagem que os candidatos a tiranos, os arrogantes e os deslumbrados pelo tamanho do seu ego conhecem é a linguagem da coragem e do desassombro. E ninguém mais do que a União Europeia tem autoridade ou poder para essa contestação e confronto. Não se espera que os líderes europeus respondam à letra, com as palavras rascas do costume e os tiques de tiranete que o tornam tão parecido com os perfis dos ditadores da América do Sul dos anos de 1970. Não podem é abdicar da defesa da sua dignidade e usar a moderação como um reflexo do medo e da subalternidade. A parceria transatlântica é tão importante para a Europa como para os Estados Unidos no mundo multipolar e ameaçador que se projeta.

Resistir a Trump e batalhar por uma relação de igual para igual implica que a Europa olhe para as suas vulnerabilidades na competição com o seu parceiro e as corrija. Por muito que custe reconhecê-lo, o mundo de hoje equilibra-se cada vez mais pela força militar e a Europa vai ter de aumentar a sua autonomia em relação aos Estados Unidos Como vai ter de olhar para as suas debilidades econômicas e encontrar meios e energia para se aproximar da linha da frente da competição pelas indústrias do futuro. Terá de o fazer sem ceder nas grandes âncoras do seu projeto transnacional: na democracia, no Estado de direito, no Estado social, no respeito e proteção das minorias. Trump, há que acreditar, é um incidente de percurso na história da democracia dos Estados Unidos.

Resistir e responder com convicção sem ceder nos valores é uma forma de preservar a identidade e a coesão do projeto europeu, mas é também um contributo para todos os que, nos Estados Unidos, se dispõem a enfrentar e sobreviver ao pesadelo de Trump. A sua luta até às próximas eleições é importante para todos. Um país com a solidez institucional e a qualidade das elites intelectuais dos Estados Unidos é capaz de aguentar quatro anos de atropelos. Até lá, talvez seja possível provar que a linguagem agressiva e demagógica de Donald Trump não resolve os problemas da América ou do mundo. Talvez seja possível recuperar a ideia republicana de que o exercício do poder deve ficar entregue aos homens bons e não aos vilões condenados ou suspeitos de ataques a mulheres ou a eleições livres.

Certo, certo é que daqui para a frente será mais difícil separar a América dos maus. No mundo multipolar, com a tensão entre blocos a crescer, a Europa está cada vez mais sozinha. Pode ser que a solidão a faça despertar. Por muito deprimidos que estejamos, a causa da democracia na América não morreu e a melhor forma de lhe injectar vitalidade é criar deste lado do Atlântico um muro de resistência. Para o erguer, há que dizer ao senhor Trump que todos os seus insultos, ameaças e provocações terão a resposta que merecem. A Europa precisa da América, mas precisa ainda mais da sua dignidade, sem a qual não haverá nem energia, nem confiança, nem sequer razão para se conservar no lado bom da força.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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