As crianças calafetadas (Por Miguel Esteves Cardoso)

Nunca houve melhor altura para ser um troll. As pessoas já não suportam que não se goste delas. Não compreendem. Não aceitam. Acham injusto. Defendem-se. Acham que conseguem convencer os trolls a gostar delas.

As pessoas até se suicidam — e as que não se suicidam deprimem-se e levam vidas deprimidas e, quando a depressão levanta, aproveitam para se zangarem com o mundo.

As crianças crescem calafetadas, protegidas das críticas agressivas, das violências verbais e de todas as inimizades irracionais do mundo.

As expressões de ódio — mesmo do ódio mais superficial e embirrativo — estão proibidas.

Toda a gente é atirada para a falsidade, forçada a ser boazinha, a exprimir sentimentos aprovados, e a mostrar-se um cidadãozinho esclarecido, incapaz de fazer uma crítica que não seja construtiva, que não seja um elogio mal escondido.

Neste ambiente artificial e desumano, mentiroso e sufocante, em que as crianças não podem exprimir a sua subjetividade emocional, obviamente aleatória e volúvel, não admira que se dê aos trolls uma reação — um destaque e uma importância — que jamais receberiam se toda a gente pudesse desabafar.

É normal e saudável que não gostem de nós. Não é preciso razão. Não há cura. Embirram conosco. Usam essa embirração para gostar mais das pessoas de quem gostam, para tratá-las melhor, para dar-lhes valor.

Gostar e não gostar de alguém, embirrar ou não embirrar, não é uma questão de racionalidade ou de justiça. Não tem solução. Não vale a pena estar com argumentos. É uma questão de gosto, como a música ou a roupa.

É um desperdício perder tempo com quem não gosta de nós. É um erro fazer-lhes frente. Isso só fortalece o ódio que já nos têm. Deveríamos preocupar-nos inteiramente com as pessoas de quem gostamos e, em segundo plano, quando sobra algum tempo e carinho, com aqueles que gostam de nós.

Os trolls servem para criar carapaça, mas as pessoas que não gostam de nós não têm culpa nenhuma.

São como nós.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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