A necropolítica na Ilha da Maré

Uma explosão anunciou o fim do mundo. Os pescadores da Ilha da Maré, na Bahia, ainda se recuperavam do sobressalto quando uma névoa fétida possuiu as praias, rompeu as ruas e infestou narizes e pulmões. A ilha sucumbiu à náusea, tosse, falta de ar e medo. Era o gás propeno do navio Golden Miller, em chamas no Porto de Aratu, que dava boa noite. Pela manhã, o bom dia: duas toneladas de óleo envenenaram o mar, os peixes e os mariscos. A ilha cercada, a pesca sufocada, um mundo desabava.

Triste fatalidade, concluiria qualquer turista desavisado. As pedras e os antepassados da Maré, porém, sabem que este é mais um capítulo de violências. A ilha era refúgio quilombola, quando escravizados fugiram de engenhos da região de Candeias e Simões Filho. Na pós-abolição, veio a exploração dos fazendeiros. Os conflitos agrários expulsaram os negros do plantio. Quem ficou, abrigou-se nas margens da ilha e abraçou a pesca. Aí desembarcaram o petróleo e o progresso.

Em 1967 foi fundado o Centro Industrial de Aratu, com cerca de 140 empresas de diversos setores. O Porto de Aratu e o Polo Industrial de Camaçari nasceram na segunda metade dos anos 1970 e reuniram mais de 90 indústrias químicas, petroquímicas, termoelétricas, automotiva e metalúrgicas. Uma reviravolta que poluiu o cotidiano, o trabalho e a saúde dos habitantes da região. Nenhum morador jamais foi consultado sobre essas iniciativas.

A violência e a desumanização do desenvolvimento econômico contra essa população, de maioria absoluta negra, é o olhar do artigo “A necropolítica ambiental nos Quilombos da Ilha da Maré”, de Bruna Pastro Zagatto e Luiz Enrique Vieira de Souza, publicado na Revista Amazônica, do departamento de Antropologia da Universidade Federal do Pará (UFPA). O estudo apoiou-se em entrevistas com três expoentes da luta por direitos dos pescadores e dos quilombolas na Ilha, usando como metodologia, segundo eles, uma etnografia engajada.

Imperava o desenvolvimentismo econômico dos militares e seu sanguinário apreço por reivindicações ou vozes dissonantes. Só a partir da década de 1990, quando o movimento ambientalista floresce é que as denúncias sobre poluição e os problemas de saúde ganham espaço nos jornais, apoio do Ibama e incomodam o poder público. Como resposta, em 1999 a Área de Proteção Ambiental da Baía de Todos os Santos foi criada. Segundo os pesquisadores, até hoje a APA só existe no papel.

As demandas dos pescadores e quilombolas seguiram desprezadas nos anos 2000. Na divisão social do trabalho das 600 famílias na ilha, as mulheres são as que mais sofrem com as doenças. Enquanto os homens sobem nos barcos, elas trabalham nos mangues, em contato constante com as águas e suas ameaças.

As ações da necropolítica

Em meados da década de 1970 o conceito de racismo ambiental passou a designar a exposição, intencional ou não, de substâncias tóxicas às comunidades negras. No Censo de 2010 92,99% da população local se reconheceu como preta ou parda. Já o conceito de necropolítica, explica o artigo, foi cunhado pelo intelectual camaronês Achille Mbembe. “O necropoder tem como foco a capacidade de criar “mundos da morte”, nos quais populações seriam submetidas a condições que lhes conferem o estatuto de ´mortos-vivos´”, dizem os autores.

Você acredita que, se Maré fosse ocupada pela elite baiana, haveria lixo tóxico? Os governos da Bahia e do Brasil elegeram a região como “zona de sacrifício ambiental”. Foi uma decisão política. Assim, o Estado se dedica a ignorar problemas e protelar ações para proteger os interesses econômicos. Um dos entrevistados pelo trabalho, o advogado Pedro Diamantino afirma que os órgãos ambientais só prometem ações quando há um acontecimento que repercute. “É uma negligência dolosa […] eles fazem daquilo ali a latrina química da Bahia”, dispara.

Em meados de 2005, um grupo de pesquisadores em saúde realizou uma pesquisa com crianças na Ilha de Maré para averiguar a relação entre segurança alimentar e contaminação. Os resultados demonstraram que o consumo de mariscos e peixes levava a altas taxas de chumbo e cádmio no sangue das crianças.  Neuza Maria Miranda dos Santos, professora da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e uma das responsáveis pelo estudo, relatou “esforços sistemáticos de diferentes agentes públicos para que sua pesquisa fosse desautorizada do ponto de vista científico”. Outro fator da necropolítica: existia só um Posto de Saúde da Família, que estava há mais de um ano sem médicos, na época da publicação do artigo.

Mas o estudo não foi em vão. Com a pressão exercida pelo Movimento de Pescadores e Pescadoras, o Ministério Público exigiu dos órgãos responsáveis respostas às evidências apresentadas. O que aconteceu? “A partir de então, toda a burocracia pública e privada viu-se obrigada a mobilizar a “máquina de guerra da necropolítica” relatou Miranda. Para não fazer nada, é preciso silenciar e adiar soluções.

O navio Golden Miller explodiu e poluiu. Seis anos de batalhas judiciais se passaram e os pescadores receberam indenizações.  O valor? 4 mil reais, após ficarem um ano sem trabalho – e depois da contaminação, a quantidade de marisco e peixe nunca mais foi a mesma.

Para Pedro Diamantino, isso não faz a menor diferença. As empresas fazem seguros para acidentes “que na realidade já estão de certa maneira previstos e fazem parte da contabilidade dos empreendimentos desde o início”. Segundo o trabalho, quem pagou as ações indenizatórias aos pescadores foi uma seguradora estrangeira. As empresas envolvidas no acidente, Braskem e a CODEBA, não aparecem.  Essa impessoalidade é outro traço da necropolítica.

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