Caetano Veloso, o Brasil dos evangélicos e a necessidade de diálogo

`Por Hubert Alquéres

 

O show de Caetano Veloso e Maria Bethânia, que correu o país ao longo do último ano e cuja turnê se encerrou neste final de semana em Salvador, teve um momento emblemático: a interpretação por Caetano de “Deus Cuida de Mim”, do pastor Kleber Lucas. A reação dividida do público, que variou entre frieza e desconforto, evidenciou o desafio que o Brasil enfrenta ao dialogar com o universo evangélico, uma força cultural, social e política que já representa cerca de um terço da população e cresce de forma avassaladora.

Os evangélicos são majoritariamente pobres e vivem nas periferias dos grandes centros urbanos. Surgiram como reflexo do êxodo rural e da transformação do Brasil de uma sociedade agrária para urbana.

Em muitas regiões as igrejas pentecostais e neopentecostais oferecem não apenas acolhimento espiritual, mas também redes de solidariedade, incentivo ao empreendedorismo e suporte emocional e social. São, para muitos, a única alternativa à violência, à precariedade e ao abandono.

Algumas igrejas também têm contribuído na área da educação, oferecendo cursos profissionalizantes e de alfabetização para jovens e adultos, especialmente em comunidades de periferias. Esses esforços são parte de uma tentativa concreta de diminuir a vulnerabilidade e abrir portas para novas oportunidades.

Essa realidade explica, em parte, o crescimento exponencial dessas igrejas, que atraem novos fiéis em um ritmo impressionante, com a criação de mais de 14 mil novas congregações por ano, segundo o IBGE.

Apesar de seu impacto, o universo evangélico é frequentemente alvo de preconceitos e estereótipos, especialmente por setores ditos progressistas. Boa parte da esquerda, em particular, tem dificuldade em compreender e dialogar com essa realidade, tratando os evangélicos como inimigos políticos ou ignorando sua complexidade. Críticas à teologia da prosperidade, por exemplo, desconsideram que, para muitos fiéis, ela simboliza a possibilidade de melhoria de vida em meio a uma realidade de vulnerabilidade. O fortalecimento dos laços familiares, outra bandeira comum entre evangélicos, é muitas vezes reduzido a conservadorismo, quando na verdade representa uma resposta concreta a condições sociais adversas, como a desestruturação familiar causada pela violência e pelas drogas.

Por outro lado, o universo evangélico não é isento de críticas fundamentadas. A atuação política de bancadas evangélicas, por exemplo, levanta preocupações legítimas sobre a ameaça à laicidade do Estado. Além disso, o código moral conservador de boa parte das igrejas evangélicas frequentemente entra em conflito com pautas progressistas relacionadas aos direitos individuais.

Reconhecer a importância dos evangélicos na construção do Brasil não significa ignorar essas tensões, mas sim enfrentá-las de forma aberta e respeitosa, sem cair em estereótipos que reduzem esse grupo a um bloco homogêneo ou ideologicamente monolítico.

O antropólogo Juliano Spyer, em seu livro “Povo de Deus”, traz uma perspectiva essencial para entender esse fenômeno. Ele destaca como as igrejas evangélicas assumem, em grande parte, funções que deveriam ser do Estado, ao promover redes de apoio comunitário e abrir caminhos para a mobilidade social. Além disso, Spyer alerta para o erro estratégico de setores progressistas em tratar os evangélicos como adversários ou em ameaçá-los com uma agenda identitária, ignorando pontos em comum que poderiam ser a base para um diálogo construtivo.

Caetano, ao interpretar um hino evangélico em seu show, fez mais do que cantar: propôs um gesto de escuta e respeito. Esse ato, que poderia ser lido como um convite ao entendimento, revelou a dificuldade de setores culturais e políticos em lidar com o crescimento evangélico. Mas o futuro do Brasil será inevitavelmente moldado por essa parcela da população. Na próxima década, os evangélicos podem se tornar maioria, e ignorar essa transformação é, no mínimo, um erro estratégico.

Por outro lado, o gesto de Caetano reafirma a importância de sua obra e da de Maria Bethânia para o Brasil. Ambos sempre foram cronistas sensíveis do país, traduzindo em suas músicas as dores, as esperanças e as contradições de uma sociedade em constante transformação. Suas trajetórias se entrelaçam com a história cultural brasileira, reafirmando a arte como um espaço de resistência, diálogo e inclusão.

Se quisermos construir um Brasil mais inclusivo, precisamos abandonar preconceitos e reconhecer o papel positivo que os evangélicos desempenham em comunidades vulneráveis, ao mesmo tempo em que enfrentamos com maturidade os desafios que essa presença traz. É possível encontrar convergências, como a defesa de valores familiares, o combate à violência e o incentivo ao empreendedorismo.

Em seu show,  Caetano nos lembra que o caminho para o diálogo começa pela escuta. O Brasil, como sociedade, só tem a ganhar ao se abrir para esse entendimento. É hora de superar estereótipos e enxergar os evangélicos como parte integral da nossa história em transformação.
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Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação, vice-presidente da Câmara Brasileira do Livro e um dos diretores do Colégio Bandeirantes. Foi secretário de estado da educação em São Paulo.

 

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