Paulo Barros e o incômodo com o enredo negro na festa que é negra

O ano era 2018, no espetáculo Contos Negreiros do Brasil, o teatro estava lotado, a cena se desenrolava entre o português e o iorubá. No meio da plateia, um homem branco, de meia idade, interrompeu: “Traduza para o português, eu não estou entendendo!” Segui em frente. Mas ele insistiu, cada vez mais alto, a impaciência crescendo em seu rosto. Até que parei, encarei-o e disse, sem precisar elevar a voz: “O brasileiro médio não entende alemão, mas vai à ópera. Não entende inglês, mas canta os refrões da Broadway. Se você não compreende aquilo que está mais enraizado na sua cultura do que qualquer outra influência estrangeira, então o problema não é a língua. Sabemos bem o que significa o seu ‘não entender’.”

O episódio poderia ser um caso isolado, mas não é. Ele ecoa em cada tentativa de silenciamento, em cada desqualificação de narrativas negras, em cada esforço para rotular nossa cultura como secundária, repetitiva ou menor.

A fala de Paulo Barros, que declarou que “desfiles de Carnaval com temática africana são todos iguais e ninguém entende nada”, insere-se exatamente nesse contexto. Revela não apenas um desconhecimento sobre a profundidade das narrativas afro-brasileiras, mas também um incômodo que atravessa séculos: a dificuldade em aceitar a centralidade da cultura negra sem exotização, sem apagamento, sem que precise de uma validação externa para ser considerada legítima.

A repetição como argumento e a colonização do olhar

A crítica de Barros expõe uma lógica antiga: aquilo que pertence ao imaginário europeu pode ser contado infinitas vezes sem ser questionado. Os épicos de reis, as tragédias gregas, as odes a Paris e Roma nunca são taxadas como “mais do mesmo”. Mas quando a cultura negra ocupa esse espaço, a acusação de redundância surge como um reflexo condicionado.

A diversidade dos enredos afro está na própria essência da cultura negra, múltipla, fragmentada, tecida em incontáveis fios de resistência. O que Barros chama de repetição nada mais é do que sua própria incapacidade de ver nuances onde não quer enxergar.

A fala de Barros também revela um jogo de poder: quem tem o direito de contar histórias? Durante muito tempo, a cultura negra foi instrumentalizada no Carnaval apenas como adereço, pano de fundo, um “elemento exótico” dentro da narrativa construída por carnavalescos brancos. Mas quando os enredos afro vêm de um lugar de protagonismo, quando não estão ali apenas para ilustrar, mas para afirmar, ensinar e reivindicar, então passam a incomodar.

A resistência a essas narrativas não é sobre estética ou inovação. É sobre um país que ainda se recusa a lidar com a profundidade da cultura negra e seu papel central na construção do Brasil.

Monteiro Lobato foi celebrado por décadas na avenida, mesmo sendo um dos escritores mais declaradamente eugenistas do país. A princesa Isabel foi vendida como “redentora”, sem que se discutisse o real contexto da abolição. Hollywood conta e reconta os mesmos dramas europeus sem que ninguém questione a falta de novidade.

Por que, então, quando a cultura negra ocupa o centro do palco, o argumento da repetição surge como crítica?

O espectador que pede para que se “traduza” o iorubá talvez não queira entender. Porque já falamos iorubá todos os dias, sem perceber. Nossa língua, nossa música, nossa comida, nosso jeito de celebrar são afro-brasileiros por natureza. O Carnaval é apenas a maior e mais espetacular evidência disso.

A verdade é simples: o problema nunca foi o enredo. O problema sempre foi o desconforto que ele causa em quem não quer escutar.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.