A parábola do gato e as mudanças climáticas

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Quase tanto quanto torci por Ainda estou aqui no último domingo (2), durante a premiação do Oscar, foi minha torcida por Flow, que tem como protagonista um gatinho preto tentando sobreviver a um mundo que, de repente, sofre uma inundação de proporções bíblicas.

Meu lado gateira falou alto, confesso, mas não foi isso – ou só isso – que me levou às lágrimas já quando eu assisti ao trailer do belíssimo filme da Letônia, vencedor da categoria de melhor animação do ano. Durante a exibição no cinema, então, foi um chororô só. Fiquei absolutamente emocionada.

Sem precisar recorrer à antropomorfização dos bichos, e sonorizada apenas com música e os sons naturais emitidos pelos animais (eles não falam – o que achei um acerto tremendo do diretor Gints Zilbalodis), a película é uma poética parábola sobre as mudanças climáticas. Ou ao menos essa é uma das interpretações possíveis.

Isso não é dito – nada é dito. Não sabemos como o mundo chegou àquele ponto. Por que a água sobe de repente. E naquele volume surreal. Por que os humanos não estão mais ali. Se fugiram. Se sucumbiram.

Tudo o que temos são os animais, suas vocalizações, gestos e expressões faciais – medo, angústia, curiosidade. O gato, o cachorro, o lêmure, a capivara e o secretário (uma ave de rapina, tipo uma garça grandona) em um barquinho, uma espécie de arca de Noé, navegando por campos e cidades submersas, em um esforço para também não desaparecerem.

É uma história de convivência entre os diferentes, de tolerância aprendida. Da necessidade de se adaptarem e cooperarem, ao intuir que somente juntos eles têm alguma chance diante de um cenário sobre o qual eles não têm nenhum controle. Mas também de perplexidade e de desamparo frente a um problema sem solução, como bem descreveu o colega Rodrigo Ratier em sua coluna no UOL. 

Coincidência ou não, é a mesma temática do filme Robô selvagem, que concorreu à categoria de melhor animação do Oscar. Curti. Mas não amei como Flow. No filme à la Disney – na verdade é da Dreamworks –, não há muito espaço para sutilezas ou interpretações. Também não há humanos, mas robôs e animais bem falantes, que não deixam nada sem muita explicação.

Ali também estamos em um mundo pós-apocalíptico, evidenciado na cena em que os gansos, em sua viagem de migração para locais mais quentes, sobrevoam a ponte Golden Gate, na Califórnia, totalmente submersa. E, assim como em Flow, os animais que ficaram no norte precisam se ajudar para sobreviver a um inverno anormalmente rigoroso (sim, essa também é uma consequência das mudanças climáticas).

Uma crítica do site americano mashable.com definiu que os dois filmes são “silenciosamente revolucionários sobre mudanças climáticas”. Mesmo não sendo a mensagem expressa das histórias, o problema está apresentado nelas como “parte inextricável de seus cenários – assim como se tornou uma parte inextricável de nossa própria experiência na vida real”. Concordo.

Em entrevista ao site, Zilbalodis fala sobre as pistas que deixou ao longo do filme de que os humanos em algum momento não só estiveram por ali como sabiam que o nível da água iria subir. O primeiro sinal é um barco que aparece preso nos galhos de uma árvore logo nos minutos iniciais, quando o gatinho está perambulando pela mata. 

A água já subiu até ali em algum momento antes. O mundo já sofreu com aquilo, talvez tenha sido o que levou ao desaparecimento dos humanos. Eles tentaram se preparar, mas não foi o suficiente? Teriam fugido e deixado animais para trás? Esse é o novo normal?

Para a mensagem que o filme tenta passar, isso, na verdade, pouco importa. “Acho que nos importamos mais com um gato nessa situação do que com uma pessoa”, disse Zilbalodis ao Mashable. “Para o bem ou para o mal, nos importamos mais com animais no cinema.”

Chris Sanders, diretor de Robô selvagem, tem uma opinião parecida. “Quando esses eventos acontecem com animais, é pungente, porque eles não tiveram nada a ver com isso”, complementou. 

Impossível não pensar, imediatamente, no cavalo caramelo que ficou dias sobre um telhado na cidade de Canoas (RS), em meio às enchentes que atingiram o estado em maio do ano passado. Assim como nos milhares de gatos e cachorros que ficaram para trás quando a água destruiu suas casas e levou embora seus donos.

É um problema que nós, humanos, causamos, e estamos impondo as consequências a todas as outras espécies com as quais dividimos este planeta – assim como às novas gerações. Daí a força dos filmes, especialmente de Flow.

É pós-apocalíptico, mas não é uma tragédia. Sua beleza é mostrar que o mundo pode continuar existindo. Talvez sem nós. Ou com outro tipo de experiência da nossa parte. Em que caiba cooperação e tolerância entre povos e espécies. Em uma configuração em que a natureza tenha espaço para se readaptar.

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