“Estrada do Negão” opõe Vale e indígenas e paralisa Ferrovia de Carajás: MPF recorre

Mais um capítulo de tensão se desenrola no coração da Amazônia, onde a gigante mineradora Vale S.A. e comunidades indígenas da Terra Indígena Mãe Maria, em Bom Jesus do Tocantins, no sudeste do Pará, travam uma disputa que expõe as frágeis relações entre grandes empreendimentos e os povos originários. Desde a última segunda-feira (10), indígenas do povo Gavião ocupam os trilhos da Ferrovia Carajás, uma linha de 890 km que serpenteia o Pará até o porto de Itaqui, no Maranhão, escoando o cobiçado minério de ferro de Carajás rumo ao mercado chinês.

O protesto, que já dura cinco dias, é um grito contra o que chamam de violações de direitos pela Vale, incluindo irregularidades ambientais e promessas não cumpridas.

A resposta da empresa foi buscar na Justiça a desocupação imediata da ferrovia, essencial para sua logística bilionária. Mas o Ministério Público Federal (MPF) contra-atacou: na quarta-feira (12), recorreu da decisão judicial que ordenava a saída dos indígenas em apenas uma hora, sob ameaça de multa. O MPF denuncia irregularidades processuais, desrespeito a direitos constitucionais e a falta de diálogo com os manifestantes, exigindo a suspensão da ordem até que a Vale e o poder público ouçam as demandas do povo Gavião.

A ocupação da ferrovia não é um ato isolado. Os indígenas protestam contra a chamada “Estrada do Negão”, uma via aberta pela Vale durante a duplicação da Ferrovia Carajás para facilitar o acesso às obras em períodos de chuva. Segundo os manifestantes, a estrada — que corta o território indígena — não foi licenciada pelo Ibama nem autorizada pela comunidade, violando os limites da área cedida à mineradora. A obra, dizem, abriu brechas para a invasão de terceiros, aumentando a vulnerabilidade da Terra Indígena Mãe Maria.

Além disso, promessas de compensação, como serviços de saúde complementar, teriam sido descumpridas pela Vale, acirrando a revolta. Sob lonas amarradas entre árvores, com corpos pintados e cocares vermelhos, lideranças discursam para uma plateia atenta, composta por indígenas e apoiadores. O cenário é de resistência: chão de terra, vegetação densa e barracas improvisadas revelam a determinação de quem não pretende ceder sem ser ouvido.

A batalha judicial

O MPF, liderado pela procuradora Gabriela Puggi Aguiar, entrou em campo para mediar o conflito e garantir os direitos dos indígenas. O recurso apresentado aponta que a Vale tentou usar um acordo judicial antigo para forçar a desocupação, sem abrir um novo processo, o que violaria o princípio do juiz natural.

A decisão judicial, segundo o órgão, também ignorou o direito de defesa de uma coletividade não identificada no processo e foi comunicada de forma truculenta: à noite, com presença policial, sem diálogo prévio.

Para o MPF, a ocupação é uma manifestação pacífica em espaço público, amparada pela Constituição e por decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). A ordem de desocupação, ao contrário, seria uma afronta a esse direito, além de desconsiderar a necessidade de equilibrar os interesses econômicos da Vale com as demandas indígenas.

O recurso pede a suspensão da decisão, a realização de um diálogo interétnico com participação de órgãos como a Funai e a DPU, e até uma multa à Vale por litigância de má-fé, a ser revertida ao povo Gavião.

Um embate histórico

A Ferrovia Carajás, vital para a exportação de minério ao mercado chinês, é mais do que uma linha de trem: é um símbolo das tensões entre o modelo extrativista e os direitos dos povos tradicionais. A Vale, uma das maiores mineradoras do mundo, já enfrentou críticas por impactos ambientais e sociais em suas operações, como os desastres de Mariana e Brumadinho. Agora, a ocupação em Marabá reacende o debate sobre o custo humano e ambiental de sua presença na Amazônia.

Os indígenas, por sua vez, lutam para proteger um território que já sofre pressões de desmatamento, garimpo e grilagem. A “Estrada do Negão” é apenas a ponta do iceberg: sem licenciamento ou mitigação, ela exemplifica como grandes obras podem avançar sobre terras indígenas sem consulta prévia, desrespeitando a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário.

O que está em jogo

Enquanto o minério de ferro segue parado nos trilhos, o embate entre Vale e indígenas expõe um dilema maior: até que ponto o lucro de gigantes corporativas pode prevalecer sobre os direitos constitucionais de comunidades tradicionais? O MPF alerta para o risco de repressão — seja por multas exorbitantes, seja por ação policial —, mas também aponta um caminho: o diálogo. Resta saber se a Vale e o Judiciário optarão pela negociação ou pela força.

O processo (nº 1001243-38.2017.4.01.3900) segue em aberto, e o desfecho pode marcar um precedente na relação entre mineradoras e povos indígenas no Brasil. Por ora.

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