Depois de 40 anos de Brasília, me alegro com a gentileza carioca

Quando me preparava para passar três semanas no Rio de Janeiro, fui aconselhada peremptoriamente, a não usar o celular no meio da rua. Um amigo me ofereceu “o celular do ladrão”, que ele usa no Carnaval, um aparelho velho que pode ser levado sem grandes danos ao nosso pobre patrimônio. Obrigada, mas vou só com o meu mesmo. Lidar com um telefone já é uma complicação, imagine com dois.

Botei o celular na bolsinha traspassada no peito e lá fui eu, me aventurar pelas ruas do Rio de Janeiro do Leme à Central do Brasil; de Copacabana à Gávea. Não demorou pra eu perceber que o carioca usa o celular no meio da rua o tempo todo. Para, rola a tela, responde, confere endereço, e segue andando com o celular na mão. Não é todo mundo, mas é bem frequente.

Sim, há lugares nos quais os celulares desaparecem. Na entrada das estações de metrô do centro – Cinelândia, Carioca, Largo do Machado – o aparelho some, mas logo ressurge, ansioso, dentro dos vagões e dos ônibus. Nas escadas rolantes lotadas, ele também dá um chá
de sumiço. Mas logo que se volta à terra firme, ele reaparece.

Pra não dizer que não tive medo, passei uns apertos no centro do Rio no fim de semana. Nas ruas quase vazias, é mais nítida a presença dos moradores de rua. É quando eles passam a ter domínio sobre o território. Também fiquei um tanto aflita quando, no domingo de manhã, fui parar no fim da linha do VLT, a estação central em reforma, colada no Morro da Providência, a favela mais antiga do Brasil – existe desde o começo do século XX.

Na estação cercada de tapumes e cercas de arame, uma mulher sentada ao meu lado conferia uma pilha de papeizinhos dobrados que havia tirado da bolsa: bilhetes de loteria, notas fiscais, receitas médicas, anotações em pedaços de folhas de caderno. Um por um, ela ia abrindo
aquele relicário de papeis, sem nenhuma pressa, sem nenhum receio – quem iria quer lhe tomar um monte de papel velho? Saí sem saber se aquela mulher de unha do pé pintada de roxo tinha 50, 60 ou 70 anos, uma mulher que já envelheceu quase tudo.

Dentro do VLT, voltei a me sentir segura. Na Praça XV, pego a barca para Niterói, vejo que muitos passageiros estão preparando o celular para registrar alguma coisa. É um avião está fazendo manobra para decolagem no Santos Dumont. Quando acelera, um enorme jato de água, tipo um gêiser horizontal, se forma com a força da propulsão para levantar voo.

Segredos coletivos da vida urbana carioca – e eu comi mosca, claro. De tudo, de tudo, o que mais me surpreende, depois de 40 anos de Brasília, é a gentileza espontânea do carioca. É bom dia o tempo todo, sorrisos vários, e gestos cordiais e solidários inesperados — como o homem que me deu passagem na entrada apressada do metrô ou a moça na fila do supermercado que defendeu com veemência o direito de um morador de rua de continuar na calçada onde estava.

Fico pensando que a vida urbana, no limite da aflição, vai nos tornando mais solidários. Querendo ou não, conscientes ou não, precisamos uns dos outros no corre das ruas das grandes cidades. Estamos todos ou quase todos no mesmo barco e ele não pode afundar. É nesse quase mudo desespero, em território de invencível beleza e inevitável alegria, na mistura caótica de natureza e cultura, o Rio de Janeiro resiste e nós resistimos com ele.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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