As aulas de resistência (Por Miguel Esteves Cardoso)

Um dos prazeres da velhice é ir reorganizando o currículo das crianças, de forma a adequar-se melhor aos nossos preconceitos.

É neste espírito que proponho dar às crianças mais velhas – ainda não sei a partir de que idade – pelo menos dois anos de aulas de uma cadeira que lhes vai dar jeito até caírem da tripeça: a Resistência.

A Resistência é o conjunto de técnicas que se usam para nos defendermos das sugestões dos outros.

Vai desde o simples dizer “Não” (que de simples nada tem e que só os cinturões negros conseguem dominar), até às mais sofisticadas técnicas de procrastinação.

Se há coisa que se aprende quando se tem muitos anos disto é que toda a gente nos quer empurrar para o que lhes convém.

O que vale é que cada um empurra numa direção diferente – um para nos fazermos advogados, outro para fugirmos para Bali – e cedo percebemos que, como não podemos satisfazer toda a gente, mais vale não satisfazermos ninguém.

Ninguém, quer dizer, ninguém a não ser a pessoa mais empenhada numa solução, que mais arrisca e que mais petisca: tu.

É muito fácil empurrar. Fácil e rápido. Alguém diz “devias seguir Medicina”, gasta três segundos com as três palavras, e segue caminho.

Já nós passamos o resto do ano – porventura a vida inteira – a matutar naquelas três palavras, e a repetir como um robô: “O meu tio Zé é que achava que eu devia ter sido médico… e eu, estupidamente, não liguei nenhuma…”

Como não podemos proibir a palavra “devias” (mas que paraíso seria, se pudéssemos!), temos de aprender a resistir.

A resistência aos empurrões é um delicado râguebi feito de fintas e bloqueios, em que tentamos seguir com a nossa bola nos braços, enquanto somos perseguidos pelos nossos amigos e familiares, cada um a querer empurrar-nos – não para outro lado do campo, mas para outro desporto, ou para outro universo que não o desportivo.

A resistência exige encantamento, técnicas de desvio da atenção, maquiavelismo, muita lábia e… paciência.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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