Entre Trump e o Rato Mickey, eu voto no Rato (Por João Miguel Tavares)

Kamala Harris pode vir a ser uma boa Presidente dos Estados Unidos? Ninguém sabe. Ela é um ponto de interrogação com 1,63 metros de altura. O seu currículo como vice-presidente é apagado, e há quem tema que possa vir a deslocar o Partido Democrata ainda mais para a esquerda, afastando-se do esforço centrista de Joe Biden. Kamala não é certamente comunista, como Donald Trump gosta de lhe chamar, mas tem feito um grande esforço para não mostrar aquilo que é, com a sua estratégia de comunicação a apostar tudo nos perfis pessoais e a fugir a sete pés das entrevistas substanciais.

O insuspeito New York Times disse que a campanha de Kamala tem sido alimentada pelo “calor” e pelos “bons sentimentos” do Partido Democrata, que é como quem diz, muita paixão e pouca razão. Cito: “Quando Hillary Clinton se candidatou a Presidente em 2016, ela tinha mais de 200 propostas políticas. Há quatro anos, Joe Biden apresentou um programa de 110 páginas. Até ao momento, Kamala Harris não tem uma única página com propostas políticas no seu site de campanha.”

A estratégia é clara: refugiar-se em expressões inspiradoras, mas muito vagas, como a aposta numa “economia de oportunidades”; concretizar o menos possível, aproveitando o facto de a campanha ir decorrer num intervalo inesperadamente curto; e apostar tudo nos seus dois grandes trunfos, a saber: 1) Kamala Harris não corre o risco de ficar senil na Casa Branca, como Joe Biden; 2) Kamala Harris não constitui uma ameaça para a democracia americana, como Donald Trump.

É um facto que estes dois trunfos são 100% passivos e 0% activos. Nenhum deles tem qualquer mérito, na medida em que há aproximadamente 300 milhões de americanos que partilham ambas as características. Mas são, ainda assim, dois trunfos imbatíveis. Se eu fosse americano, votaria de caras em Kamala Harris, ainda que possa discordar das suas políticas. Aliás, se eu fosse americano, votaria de caras no Rato Mickey, porque tanto Kamala como Mickey têm a mais inestimável das qualidades: não são Donald Trump.

O meu problema com Trump está muito para além do “grab’em by the pussy”, da sua interminável colecção de mentiras e ordinarices ou das suas más leis. O meu problema com Trump é, em boa medida, pré-ideológico, entendendo aqui por ideologia as diferentes ideias políticas que coexistem dentro do quadro de uma democracia liberal. Não se trata de ele ser muito à direita, muito conservador, muito anti-imigração, muito populista – tudo isso são posições discutíveis e debatíveis. O meu problema é ele não ter respeitado os resultados eleitorais de 2020. Andou meses sem fim a queixar-se de fraude, e ainda hoje não admite que perdeu as eleições de forma legítima. Pior: escolheu um vice-presidente – J.D. Vance – que mantém uma perigosa ambiguidade nessa matéria, ao contrário do proscrito Mike Pence.

Vejo muita gente à direita entretida a demonstrar como as propostas de Kamala Harris são péssimas para os Estados Unidos, procurando justificar o porquê de o regresso de Trump ser preferível, por muitas falhas que tenha o seu carácter. Não engulo essa argumentação. Não dá para jogar futebol com quem remata à baliza com as mãos. A democracia tem regras. Entre um democrata com péssimas ideias e um autocrata com ideias fantásticas, o meu voto irá sempre para o democrata. Kamala pode vir a ser uma desilusão? Claro que pode. Mas é incompreensível que ainda alguém se iluda com Donald Trump em 2024.

(Transcrito do PÚBLICO)

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