Estudos de Leonardo da Vinci da anatomia ainda são pouco reconhecidos

* O artigo foi escrito por Michael Carroll, professor associado em Ciências Reprodutivas da Universidade Metropolitana de Manchester, e publicado na plataforma The Conversation Brasil. 

A simples menção do nome de Leonardo da Vinci evoca genialidade. Nós o conhecemos como um polímata cujos interesses abrangiam astronomia, geologia, hidrologia, engenharia e física. Como pintor, sua Mona Lisa e Última Ceia são consideradas obras-primas.

No entanto, uma grande conquista frequentemente não reconhecida de Leonardo são seus estudos de anatomia humana. Mais de 500 anos após sua morte, é hora de mudar isso.

Acredita-se que Leonardo tenha nascido em 15 de abril de 1452 em Anchiano, um pequeno vilarejo próximo à cidade de Vinci, perto de Florença. Sua mãe era uma camponesa de 16 anos chamada Caterina di Meo Lippi, e seu pai era Ser Piero da Vinci, um tabelião de 26 anos.

Por ser ilegítimo, o jovem Leonardo só teve direito a uma educação elementar em leitura, escrita e aritmética. Ele também foi impedido de se tornar um notário, mas isso acabou sendo uma vantagem para ele. Em vez de ser limitado pela vida cartorial, ele estava livre para ser criativo e explorar o mundo da natureza, satisfazendo seu apetite insaciável por conhecimento.

A anatomia humana tornou-se um de seus grandes interesses. Curiosidade semeada durante seu período como aprendiz na bottega (estúdio) de Andrea del Verrocchio em Florença, onde o estudo da forma humana era crucial para obter representações realistas.

A criação de desenhos anatômicos detalhados exigia habilidades de esboço precisas e a capacidade de representar com exatidão as estruturas que estavam sendo estudadas. À medida que o fascínio de Leonardo crescia, ele se aprofundava na anatomia como uma disciplina.

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Esboços do coração, datado de 1507

Esboço de bebê no útero, datado de c1510-1513
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Esboços de músculos humanos, datado de 1515

Wikimedia, CC BY-SA/ The Conversation

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Esboços do coração, datado de 1507

Wikimedia, CC BY-SA/ The Conversation

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Esboço de bebê no útero, datado de c1510-1513

Wikimedia, CC BY-SA/ The Conversation

Pioneiros

A anatomia como uma disciplina remonta ao médico grego do século II Galeno de Pérgamo, cujas descrições anatômicas baseavam-se principalmente em percepções que ele havia obtido por meio da dissecação de animais e do estudo de gladiadores feridos. Entretanto, ele não fez dissecações humanas – eram ilegais em sua época – e muitas de suas extrapolações da anatomia animal para a humana estavam erradas.

Foi só no século XIV que a anatomia e a ciência médica avançaram graças ao início das dissecações sistemáticas de cadáveres humanos. O médico Mondino de Liuzzi, que praticou as primeiras dissecações públicas de cadáveres humanos na Universidade de Bolonha, publicou o primeiro texto anatômico moderno, Anathomia Corporis Humani, em 1316.

O texto era principalmente de natureza descritiva, como o de Galeno, sem desenhos para ilustrar a anatomia. Os textos subsequentes sobre o assunto durante o século XIV e início do século XV continham desenhos, mas eram básicos e irreais.

Leonardo avançou nessa disciplina por meio de suas notáveis habilidades de observação, conhecimento de perspectiva e, mais notavelmente, suas extraordinárias habilidades de desenho. Seus esboços anatômicos eram diferentes de tudo o que havia sido visto antes. Por exemplo, seus esboços dos músculos dos braços e do crânio humano são comparáveis às ilustrações dos textos de anatomia médica atuais.

De acordo com o biógrafo de Leonardo, Giorgio Vasari, o artista “foi um dos primeiros que, com os ensinamentos de Galeno, começou a honrar os estudos médicos e a lançar uma luz real sobre a anatomia, que até então estava envolta nas mais profundas sombras da ignorância”.

Leonardo foi o primeiro a descrever um estudo detalhado da coluna vertebral humana, mostrando sua curvatura natural e as vértebras corretamente numeradas. Ele desenhou e descreveu quase todos os ossos e músculos do corpo em belos detalhes, além de investigar sua biomecânica.

Seus estudos sobre o coração combinavam experimentação e observação. Usando o coração de um boi para entender o fluxo sanguíneo através das válvulas aórticas, Leonardo derramou cera derretida nas cavidades circundantes para fazer um molde, a partir do qual foi feito um modelo de vidro do coração. Em seguida, ele bombeou água misturada com sementes de grama por esse modelo para visualizar o padrão de fluxo. A partir desse experimento, ele concluiu que o fluxo de sangue em forma de vórtice através das válvulas aórticas era responsável por fechá-las durante cada batimento cardíaco.

Mais de 450 anos depois, em 1968, cientistas usaram corantes e métodos de radiografia para observar esse fluxo sanguíneo e provar que Leonardo estava correto. Um estudo em 2014 usando ressonância magnética (MRI) também demonstrou que ele havia fornecido uma descrição surpreendentemente precisa desses fluxos semelhantes a vórtices.

Deficiências

Leonardo pode ter dissecado cerca de 30 cadáveres humanos durante sua vida. A maioria das dissecações ocorreu no hospital Santa Maria Nuova, em Florença, e mais tarde no hospital Santo Spirito, em Roma. O fato de ele não ter tido mais cadáveres humanos para estudar provavelmente ajuda a explicar por que ele também errou.

Além disso, Leonardo foi muito influenciado por Galeno, por meio de suas leituras de Mondino de Liuzzi e do escritor persa Avicena (c980-1037), enquanto também dissecava animais como cães, gado e cavalos para preencher as lacunas anatômicas humanas.

Essa abordagem é evidente em seu estudo do sistema reprodutivo masculino e feminino, como descobri ao realizar uma revisão detalhada de seu trabalho nessa área. Os equívocos incluíam a presença de três canais no pênis para o sêmen, a urina e o “espírito animal”. A glândula da próstata também está ausente em todos os seus esboços do sistema reprodutor masculino. Enquanto isso, ele fez o útero esférico (derivado de dissecações de vacas) e, da mesma forma, deturpou as trompas de falópio e os ovários.

Mesmo assim, Leonardo ainda acertou em muitas coisas. Ele descreve corretamente a posição do feto no útero e a anatomia do cordão umbilical. Ele também argumentou corretamente que as ereções penianas eram causadas por injeção de sangue e não por ar ou “espíritos vitais” fluindo para o pênis, como sugerido por Galeno.

Nos casos em que ele errou, a mudança de foco de Leonardo também pode ter desempenhado um papel. Sua inquietação, anotações desorganizadas e trabalho inacabado sugerem TDAH. Da mesma forma, isso também pode explicar sua curiosidade sem limites e sua incrível criatividade.

Apesar de suas deficiências, os estudos anatômicos de Leonardo estavam séculos à frente de seu tempo, rivalizando com os padrões modernos. Seu trabalho nessa área poderia ter sido mais apreciado se ele o tivesse publicado em um livro: ele havia planejado um, e diz-se que estava colaborando com o médico e professor renascentista Marc’Antonio della Torre.

Infelizmente, o projeto foi interrompido com a morte de Marc’Antonio em 1511. Leonardo morreu em 1519, aos 67 anos de idade e, embora seus dons para o mundo tenham recebido atenção infinita, suas importantes contribuições para a anatomia permanecem ofuscadas e merecem maior reconhecimento.The Conversation

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