Cegos após mutirão de catarata: médico ordena reuso de aparelho. Ouça

São Paulo — Um áudio obtido com exclusividade pelo Metrópoles, e atribuído ao diretor médico da Organização Social de Saúde (OSS) Grupo Santa Casa de Franca, Francisco Luis Coelho Rocha, revela o profissional supostamente exigindo à equipe para reutilizar um aparelho destinado para uma cirurgia de catarata. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recomenda o descarte completo do dispositivo para evitar contaminações.

A OSS Grupo Santa Casa de Franca administra sete Ambulatórios Médicos de Especialidades (AMEs) do interior de São Paulo — dentre eles, o AME de Taquaritinga, onde 12 pessoas ficaram cegas após participar de um mutirão de cirurgia de catarata.

“Qual é o problema? Pode. Troca só a ponteira. Se tá parando o ‘faco’ porque troca a caneta inteira, não tem necessidade. Nós temos que cumprir a meta”, diz o médico no áudio. Ouça:

“Faco” se refere a facoemulsificação, denominação do procedimento popularmente conhecido como cirurgia de catarata. Ponteira e caneta, por sua vez, são instrumentos cirúrgicos utilizados nas cirurgias oftalmológicas.

De acordo com a Anvisa, independentemente do tipo de cirurgia, todos os instrumentais e produtos cirúrgicos são considerados críticos e devem estar estéreis para serem utilizados em qualquer paciente. Exemplo disso são as canetas de facoemulsificação e suas extensões.

“Importante destacar que, conforme as boas práticas cirúrgicas para prevenção de infecções, nenhum instrumental/dispositivo cirúrgico deve ser compartilhado entre os pacientes. Dessa forma, não se admite usar o mesmo instrumental em outros pacientes sem antes submetê-lo a todas as etapas de processamento, incluindo a limpeza e a esterilização”, diz trecho da nota técnica.

Denúncias de irregularidades

Uma enfermeira e uma analista, ambas ex-funcionárias da OSS, denunciaram uma série de irregularidades identificadas em pouco menos de quatro meses nos AMEs administrados pela instituição, especialmente em Ribeirão Preto.

Elas eram responsáveis por realizar auditorias para controle de qualidade de espaços como farmácias, central de materiais e esterilização (CME), laboratórios, ambulatórios e centros cirúrgicos. Ambas foram demitidas dias antes do mutirão de Taquaritinga, cidade situada na mesma região do estado.

As ex-funcionárias pediram para não ser identificadas por medo de represálias, mas enviaram ao Metrópoles os relatórios de auditorias realizadas na AME de Ribeirão Preto, entre junho e setembro do ano passado, com imagens da unidade e detalhe das irregularidades encontradas, além dos protocolos das denúncias registradas no Ministério Público do Trabalho (MPT), Conselho Regional de Enfermagem (Coren-SP) e Ouvidoria do Ministério da Saúde.

Irregularidades nos AMEs

Nas auditorias realizadas entre o fim de junho e o fim de setembro de 2024 na AME de Ribeirão Preto, as ex-funcionárias analisaram pelo menos 1.029 itens, dos quais foram encontradas 393 não conformidades. Muitas foram registradas mais de uma vez (em caso de reincidência), mesmo após alertura da auditoria. Segundo as mulheres, esse mesmo cenário se repete nas outras AMEs administradas pela OSS Grupo Santa Casa de Franca.


O Metrópoles destaca as principais irregularidades encontradas:

  • Não há um sistema ou processo para monitorar a validade dos kits de materiais cirúrgicos (com isso, materiais vencidos podem ser usados em cirurgias).
  • Frasco de aspiração sendo utilizado para vários pacientes, mesmo contendo secreção e com a orientação de uso único no próprio dispositivo.
  • Soro fisiológico armazenado dentro de caixas de papelão no almoxarifado, próximo aos produtos de limpeza hospitalar.
  • Falta de controle do uso de medicamentos psicotrópicos, gerando inconsistências no estoque (o mesmo ocorre para medicamentos de uso especial e antibióticos).
  • Chave do armário de medicamentos de controle especial fica na porta, sem restrição do acesso.
  • Equipes da farmácia sem os devidos treinamentos e espaço sem restrição e controle de acesso.
  • Materiais vencidos armazenados no armário de medicamentos de controle especial.
  • Profissional responsável pela coleta de exames em laboratório deixou de realizar a higienização das mãos antes e após o procedimento, além de ter tocado superfícies com a luva, oferecendo risco de contaminação cruzada.
  • Refrigerador com temperatura e armazenamento inadequado, unindo em um mesmo espaço amostras biológicas (como fezes e urina) em conjunto dos materiais necessários para coleta dos exames (meios de cultura).
  • Refrigerador com ausência de cronograma e registro de limpeza.
  • Falta de produto para higienização das bancadas de trabalho.
  • Uso de soluções para higienização das mãos fora da validade ou sem identificação, além de pontos de higienização das mãos sem cartazes informativos da técnica de higienização das mãos.
  • Paciente não recebe as orientações prévias sobre o preparo necessário para cada exame. Quando recebe, a orientação posterior difere entre o que foi impresso na unidade e o que foi enviado pelo celular, gerando dúvidas.
  • Etiquetas de identificação dos exames com dados insuficientes.
  • Não há diretrizes estabelecidas para orientar o atendimento de grupos específicos como idosos, crianças e pessoas vulneráveis, o que pode resultar em orientações inadequadas para esses pacientes.
  • Falta de evidência de limpeza do ambiente entre um exame e outro (há registro de apenas troca do lençol).
  • A caixa de material contaminado que fica na sala de exames fica armazenada na mesma pia de lavagem das mãos (evidência de contaminação cruzada).
  • Evolução da enfermagem e autorização de alta dados sem avaliação presencial do paciente e sem análise do médico (o médico assina a alta antes da recuperação do tempo anestésico).
  • Material contaminado mantido em sala durante realização dos exames.
  • Pias para higienização das mãos destinadas para outras finalidades, como como mesa para armazenar bocais e materiais contaminados ou para apoio de itens (outra evidência de contaminação cruzada e obstáculo para a lavagem correta das mãos).
  • Ausência do uso de óculos de proteção nos laboratórios de exames de endoscopia.
  • Verificado alimentos de funcionários em cima do armário da recuperação anestésica.
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Materiais contaminados foram vistos expostos em salas do AME.

Frasco de aspiração de uso único e com secreção foram usadas em mais de um paciente.
Soro fisiológico armazenado em caixas no almoxarifado, próximo a produtos de limpeza.
Material de higienização das mãos vencido e sem sinalização adequada.
Refrigerador com temperatura e armazenamento inadequado, unindo em um mesmo espaço amostras biológicas (como fezes e urina) em conjunto dos materiais necessários para coleta dos exames (meios de cultura).
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Auditorias apontaram quase 400 não conformidades no AME Ribeirão Preto em três meses de análise em 2024.

Cedido ao Metrópoles

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Materiais contaminados foram vistos expostos em salas do AME.

Cedido ao Metrópoles

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Frasco de aspiração de uso único e com secreção foram usadas em mais de um paciente.

Cedido ao Metrópoles

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Soro fisiológico armazenado em caixas no almoxarifado, próximo a produtos de limpeza.

Cedido ao Metrópoles

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Material de higienização das mãos vencido e sem sinalização adequada.

Cedido ao Metrópoles

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Refrigerador com temperatura e armazenamento inadequado, unindo em um mesmo espaço amostras biológicas (como fezes e urina) em conjunto dos materiais necessários para coleta dos exames (meios de cultura).

Cedido ao Metrópoles

A reportagem contatou a OSS e a Secretaria Estadual de Saúde (SES-SP), responsável pela contratação da organização, apontando o teor das denúncias e aguarda um posicionamento.

Em nota, a pasta diz que possui uma investigação em andamento para apurar rigorosamente o caso ocorrido no Ambulatório Médico de Especialidades (AME) de Taquaritinga, assim como as denúncias apresentadas pela reportagem.

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