Cuidado com os boiardos (Por Miguel Esteves Cardoso)

O insulto favorito do meu pai era “boiardo”. Qualquer mandão que se armasse em fino, ou fino que se armasse em mandão, achando que ao povoléu só restava cumprir sorridentemente as ordens que recebia, era logo apelidado de boiardo.

Durante muitos anos pensei tratar-se de um boi, ou de uma junta de bois. Para me explicar o que era um boiardo, o meu pai, Joaquim, deve-me ter contado várias vezes a história dos búlgaros e dos gregos, mas foi-me escapando à medida que o insulto foi ficando.

Agora, passados tantos anos, dou outra vez com os boiardos búlgaros, a resistir violentamente ao cristianismo, e a defender os valores pagãos e aristocráticos que os mantinham a mandar em toda a gente e a fazer o que muito bem lhes apetecia.

Às sensibilidades modernas soará mal haver quem se opusesse às modernices do cristianismo. Mas o cristianismo já foi o woke do Antigamente. É fácil ver porquê: defendia os pobres e os fracos, dizendo que eram todos iguais aos olhos de Deus – embora fosse bastante mais difícil entrar no reino dos céus caso se fosse rico.

O paganismo servia os privilégios dos boiardos, enquanto o cristianismo tinha um desagradável sabor democrático que não caía bem no banquete feudal, em que os boiardos tratavam os servos como objetos.

Nem tudo mudou, para não dizer que mudou pouco. O cristianismo ainda é woke que baste, embora seja um woke altamente seletivo, mas o mais engraçado é como o woke funciona como substituto da religião para a esquerda ateia.

O woke é o cristianismo de esquerda. Também tenta defender os mais pobres e os mais fracos, lutando pela dignidade dos seres humanos mais esquecidos e menosprezados. Desenganem-se aqueles que pensam que o woke acabou só porque um boiardo ganhou as eleições nos EUA.

O woke é tão antigo como o cristianismo. Há quem lhe chame progresso, evolução, ou conquista de direitos humanos, ou dignificação do indivíduo, ou extensão das liberdades fundamentais. Tanto faz.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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