Que mulher é essa, totalmente brasileira, que nos espanta?

Que mulher é essa? Tem sido um assombro atrás do outro. Como assim? Estive aqui durante esse tempo todo, nasci oito anos antes, no mesmo país, e não tinha a nítida percepção da grandeza dela? Foi só comigo que isso aconteceu? Creio que não.

O Brasil, o meu país (não aquele outro que rasteja no ressentimento e na boçalidade), está orgulhosamente aturdido com a descoberta dessa brasileira de 59 anos nascida no Rio de Janeiro, um ano e meio depois do golpe de 64. Para a maioria de nós, a imagem da Vani e da Fátima, duas mulheres livres, inquietas, atrevidas, cômicas, ficou colada em Fernanda Torres, embora ela já tivesse feito papéis dramáticos.

Atriz que é, virou Eunice Paiva, mãe atenta de cinco filhos, mulher de um ex-deputado federal cassado, moradora do Leblon e, depois da morte do marido, ativista dos direitos humanos e indígenas, mulher contida e firme, porém alegre.

Como foi bom acompanhar, noite adentro, coração na boca, o Globo de Ouro, mesmo sabendo que a vitória era improvável. Uma brasileira, num filme falado em português, competindo com Nicole Kidman, Angelina Jolie, Kate Winslet, Tilda Swinton e Pamela Anderson em desempenhos muito bons? Só Jesus na causa.

A vitória de Fernanda Torres era improvável para todos os que sabem como as coisas funcionam em premiações acima da linha do Equador. Basta ver o espanto afetuoso de Tilda Swinton, que concorria por seu papel em “O Quarto ao Lado”, de Almodóvar, ou do Selton Mello ou de todos os brasileiros que acompanhamos aquela final de Copa do Mundo na madrugada de 6/1.

Minutos depois de Viola Davis ter anunciado a vencedora, Fernanda Torres esteve no topo das pesquisas dos principais buscadores no mundo todo – o pico se deu à 0h52. Milhões de pessoas queriam saber mais sobre aquela atriz brasileira, o filme do qual participou, se é casada, com quem, se tem filhos. E buscaram também informações sobre Rubens Paiva, o ex-deputado federal trucidado num quartel do Exército do Rio de Janeiro, entre 20 e 22 de janeiro de 1971.

Mesmo convencida de que as suas chances eram quase nulas, quando se levantou para subir ao palco, diante daquele mundaréu de atores e atrizes hollywoodianos, Fernanda Torres era a dignidade em pessoa, totalmente dona de si mesma e de seu lugar no mundo. Fez um discurso improvisado, verdadeiro. Como muito bem disse Walter Salles: “A força da Nanda é isso, é uma pessoa que está sempre em total sintonia consigo mesma”. Chegou até Viola Davis com a envergadura de grande dama do cinema, o que de fato é.

“Nanda é a alma do filme”, disse Walter Salles à Folha de S. Paulo um dia depois da noite gloriosa em Los Angeles. Fernanda Torres é a corporificação de Eunice Paiva e essas duas mulheres estão nos devolvendo o Brasil. Já se disse que “Ainda Estou Aqui” fez pelo país o que a democracia não conseguiu fazer, expurgar a dor e o terror dos anos de ditadura.

Como é bom voltar ao Brasil mais bonito de se ver. Como é bom ver as emissoras de tevê, os portais, abrindo largo espaço para o cinema brasileiro. Como é bom ver a inteligência veloz com que os brasileiros produzem memes – essa arte do qual estamos nos tornando mestres vanguardistas. A própria Fernanda já disse, com agudeza de sempre: “Eu acho memes uma arte superior”, ela que é viral em vários deles.
E a alegria meio moleca, meio Vani, meio Fátima, com que posou com o troféu dourado? Totalmente brasileira.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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