Milhares de argentinos protestam contra “fascismo e racismo” de Milei

Milhares de argentinos protestaram neste sábado (1º/2) por todo o país por meio do denominado “Orgulho Antifascista e Antirracista” cuja principal manifestação foi uma passeata em Buenos Aires, entre o Congresso e a Praça de Maio, sede do governo. A manifestação teve réplicas nas principais cidades do mundo, incluindo Rio de Janeiro, São Paulo e Paris.

O cenário do Congresso se relaciona com o “projeto de igualdade perante a lei”, uma cruzada de Milei contra questões de identidade de género e contra a diversidade sexual. O projeto prevê retirar do código penal argentino o “feminicídio” como agravante penal, o documento de identidade não-binário e a cota para pessoas transsexuais em dependências do Estado.

A Casa Rosada aparece como o centro das ideias que têm ganho um conteúdo cada vez mais radical à medida que Milei exibe estabilidade econômica e proximidade com Donald Trump.

O manifestante Sebastián Sierra, de 31 anos, apoia a causa LGBTQIA+ com a venda de bonés com a inscrição “Make Argentina Gay Again” (Faça a Argentina Gay Novamente) em oposição ao discurso MADA de Donald Trump, adaptado por Javier Milei como Make Argentina Great Again.

“O efeito prático deste protesto é frear a agenda anti-LGBTQIA+, anti-direitos humanos e anti-woke de Milei. O boné, com a inscrição em inglês, visa dar uma projeção internacional à causa, uma vez que levaram os ataques ao cenário mundial durante o Foro de Davos”, explica Sebastián à RFI.

“Esta é uma causa contra todos os governos da extrema-direita, alinhados contra a agenda de direitos humanos”, acrescenta.

Javier Milei tem adotado um discurso de perseguição ao feminismo e à diversidade sexual, mas também contra a imigração e contra a defesa do meio-ambiente. No que se refere à diversidade sexual, o discurso se contradiz com o seu mantra liberal de “respeitar de forma irrestrita o projeto de vida do próximo” sob a alegação de, na verdade, buscar a “igualdade perante a lei”.

“Não é uma contradição. É simplesmente uma enganação. Milei fez as pessoas acreditarem que é um liberal, essencialmente a favor dos direitos humanos e da liberdade. Porém, isso é apenas no campo econômico. No fundo, é apenas um ultraconservador de extrema-direita. Isso se revela agora”, acusa Sebastián.

Convocada por organizações sociais, centrais sindicais, movimentos de esquerda e, principalmente, pela comunidade LGBTQIA+, a manifestação tenta combater o discurso de ódio do presidente Javier Milei, que ganhou projeção mundial ao ser ecoado através do Foro Econômico de Davos. Somaram-se à manifestação artistas, acadêmicos, intelectuais e líderes políticos.

No Foro Econômico Mundial de Davos, Milei expressou a sua cruzada contra o feminismo, contra a diversidade sexual e associou a homossexualidade com à pedofilia. Logo depois, anunciou uma série de iniciativas que revertem questões de gênero no Estado e que pretendem eliminar o agravante penal no contexto de violência de género contra mulheres, o chamado feminicídio.

“O feminicídio legaliza que a vida da mulher vale mais do que a do homem”, apontou Milei.

“Woke”

Milei criticou a cultura “woke” (“um vírus mental e um câncer a ser extirpado”), o feminismo (“O feminismo radical não procura a igualdade, mas privilégios”) e concluiu, a partir de um caso, que gays são pedófilos (“Nas suas versões mais extremas, a ideologia de gênero constitui abuso infantil; são pedófilos”).

No pacote, entrou também a imigração e as mudanças climáticas: “Feminismo, diversidade, inclusão, equidade, imigração, aborto, ecologismo, ideologia de gênero, entre outros, são cabeça de uma mesma criatura cuja finalidade é justificar o avanço do Estado através da apropriação e da distorção das causas nobres”.

Na manifestação, a advogada Alicia Siguelboin, de 78 anos, leva um cartaz com a figura artística de mulheres atacadas por Milei sob a inscrição “Basta Milei”.

“Queremos frear os objetivos de Milei e que repense a sua agenda, mas tenho muita esperança. Milei não respeita o projeto de vida do próximo. Apenas apoia uma minoria rica: retira impostos dos carros importados de luxo, enquanto mata os aposentados de fome”, compara Alicia, quem tem advogado a favor de aposentados.

O discurso de ódio contra minorias e a perseguição verbal podem ter consequência no dia a dia dos argentinos, acreditam os manifestantes.

“Com Milei, estamos regredindo a lógicas do século XIX. A minha única esperança é que os jovens, aqueles que mais votaram nele, repensem o voto. Espero que deixem de apoiá-lo. Este tipo de manifestação ajuda para isso”, reflete Alicia.

Alguns analistas acreditam que a possível queda do apoio popular pode fazer o governo recuar em alguns objetivos como a eliminação do “feminicídio”. Não tanto por um convencimento ideológico, mas pela advertência de alguns juristas de que a retirada desse agravante do código penal levaria centenas de condenados a pedirem uma redução das suas penas, baseados na figura da “lei mais benigna”.

Até esta manifestação, o projeto-lei de “Igualdade Perante a Lei” está previsto para ser apresentado a partir de 1º de março, quando o Congresso argentino começará o ano legislativo, inaugurado com um discurso do próprio presidente Javier Milei, quem anunciará os objetivos para o ano de 2025.

“Vamos eliminar o conceito do feminicídio do Código Penal Argentino porque esta administração defende a igualdade perante a Lei, consagrada na nossa Constituição. Nenhuma vida vale mais do que outra”, confirmou o ministro da Justiça argentino, Mariano Cúneo Libarona.

Feminismo “radical”?

Além de querer abolir o conceito de feminicídio, o governo quer revogar todas cotas e leis que se enquadrarem na chamada “discriminação positiva”, incluindo paridade entre mulheres e homens no Congresso, no Poder Judiciário e nas empresas. Também cotas para pessoas transexuais e documentos de identidade não-binárias, aquelas que não sejam estritamente “masculino” ou “feminino”.

“O feminismo radical é uma distorção do conceito de igualdade. Chegamos, inclusive, ao ponto de tornar normal que, em muitos países, supostamente civilizados, se alguém matar uma mulher, isso será feminicídio, desencadeando uma pena mais grave do que se alguém matar um homem, devido somente ao sexo da vítima. É a legalização, na prática, de que a vida de uma mulher vale mais do a de um homem”, criticou Milei, em Davos.

“Até que não retiremos essa ideologia ‘woke’ da nossa cultura, a sociedade do Ocidente e, até mesmo a espécie humana, não poderá retornar à direção do progresso”, concluiu Milei.

Segundo o líder argentino, os únicos capazes de salvar o mundo são os seus aliados da nova direita.

E, a partir de um caso em que um casal homossexual violentou os seus filhos adotivos, generalizou, indicando que homossexualismo é pedofilia: “A ideologia de gênero constitui simplesmente abuso infantil. São pedófilos”.

Operação Desmanche

O conceito de feminicídio foi incorporado ao Código Penal argentino em 2012 numa votação por unanimidade. A Lei considera como circunstância agravante, punível com prisão perpétua (na prática, 25 anos de máxima), o homicídio “de uma mulher perpetrado por um homem, que envolver violência de gênero”.

Por outro lado, desde 2021, os argentinos podem alterar os documentos de identidade, optando pelo “X” em vez das opções “masculino” ou “feminino”.

No que se refere às cotas, a Lei obriga que 50% dos legisladores nacionais sejam mulheres, uma medida na qual a Argentina foi pioneira. Empresas e órgãos do Estado e funcionários judiciários também têm um sistema de cotas que inclui a contratação de pessoas transexuais.

Diferentemente dos homicídios contra homens, os crimes contra mulheres são cometidos principalmente por parceiros, ex-parceiros ou conhecidos, acontecendo, na sua maioria, em ambientes privados e por questões de gênero.

O conceito de feminicídio, teórico e político, procura tornar visível a violência contra as mulheres, sendo adotado pela ONU em 2013, quando convocou as nações a tomarem medidas contra homicídios de mulheres e meninas com base no gênero.

A América Latina e o Caribe têm algumas das maiores taxas de crimes contra mulheres motivados por ódio. Em resposta, 18 dos 33 países da região criaram uma nova legislação que classifica o feminicídio como um crime de ódio. A lista inclui Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.

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