Ninguém é bilionário porque trabalhou muito

Ninguém é bilionário porque trabalhou muito

Para Viviane Santiago, da Oxfam, Norte Global se apropria das riquezas em um processo baseado no racismo e violência coloniais, herança, oligopólio e corrupção

Os números apresentados pelo relatório “As Custas de Quem – A origem da riqueza e a construção da injustiça no colonialismo”, produzido pela Oxfam, deveriam causar repulsa e espanto. Os dados foram apresentados antes do Fórum Econômico Mundial, em Davos, há duas semanas. Um palco contraditoriamente ideal.

Alguns deles: 204 novos bilionários surgiram no mundo em 2024 – quase quatro por semana. O ritmo de enriquecimento dos super-ricos aumentou três vezes em relação a 2023. No ano passado, a Oxfam previu um trilionário em uma década. A previsão agora é de que haverá cinco. Os bilionários, cerca de 2.900 pessoas, enriqueceram, em média, US$ 2 milhões por dia. Os dez mais ricos, ficam US$ 100 milhões mais endinheirados por dia. Muito trabalho? 60% da riqueza dos bilionários vem de herança, monopólio, corrupção ou conexões com poderosos.

O que mais me despertou a atenção no trabalho, porém, foram as desigualdades entre o Sul e o Norte global e a herança do colonialismo. Os países do Norte controlam 69% da riqueza global com apenas 21% da população mundial. Em posições semelhantes, os salários no Sul são de 87% a 95% mais baixos do que no Norte. Como isso foi construído?

É um processo de acumulação que se iniciou com a colonização no século XVI e vai se transfigurando até os dias de hoje, baseado na violência e no racismo. Esse é o ponto principal da conversa com Viviane Santiago, diretora-executiva da Oxfam Brasil. Recifense, professora, ativista dos movimentos de mulheres negras e dos direitos humanos com ampla carreira em organizações não governamentais. Boa leitura

A maioria das reportagens sobre o relatório focou nos bilionários e na desigualdade e não falou tanto da herança colonial, o que mais me impressionou e me fez conversar com você.

Acho que é a grande sacada, o relatório dá esse passo para trás e diz: isso não começa agora não. No Brasil parece que existe o direito divino dos ricos, as pessoas quase acreditam que as pessoas são milionárias, bilionárias, porque trabalharam muito. A gente desafia essa lógica e mostra que essas pessoas se apropriaram das riquezas, em um processo baseado na violência colonial. A riqueza do norte global vem de uma exploração baseada em raça, em classe, em gênero. Foi o que permitiu que essas pessoas acumulassem.

E o trabalho mostra os mecanismos da colonialidade

Esse colonialismo na verdade não se acaba. A colonização, em alguma medida, acaba em uma data histórica, mas a colonialidade não. Essa relação vai moldando a cabeça das pessoas, estabelece um modo de produção no mundo e a racialização do trabalho. A República Democrática do Congo move uma ação contra a Apple, acusando-a de minar os processos democráticos, uma vez que se aproveita da guerra civil para baratear os custos de produção. Olha um exemplo bem concreto de que você continua explorando um país. Você estimula esse processo de desestabilização democrática porque você tem lucros econômicos com isso.

A colonialidade é uma face oculta da modernidade que permanece até hoje. Ela se sofistica, vai permanecendo, se reinventa e se torna cada vez mais poderosa. Ela é a colonialidade do poder, é a colonialidade do saber e também é a colonialidade do próprio sujeito, é a subjetividade das pessoas no sul global.

Você não acha que os estudos sobre decolonialidade estão muito restritos às universidades e às artes?

Eu acho que isso é parte da verdade, mas falta um grupo: os movimentos sociais. Eles têm uma dinâmica profundamente decolonial, uma contribuição determinante para a constituição dos processos sociais. O movimento negro aqui no Brasil vai apontar que essa história contada não é a história verdadeira, que falta a gente destacar a contribuição negra à sociedade. Essa disputa vai acontecer principalmente a partir da academia, e não é surpresa essa dificuldade de chegar a outros espaços. A nossa tarefa é tentar quebrar esses discursos hegemônicos. Parte do desafio é produzir informações que façam sentido para as pessoas hoje. Fora a luta contra os algoritmos.

O Relatório também cita as desigualdades dentro do Banco Mundial, dentro do FMI, temos também as agências de rating. Como você acha que essas estruturas globais ajudam a manter a desigualdade?

É urgente uma reforma na governança global, porque essa estrutura é branca e colonial. Os países mais ricos do norte global, que representam uma pequena parte da população mundial, são os países que têm mais poder de voto dentro dessas estruturas e que influenciam toda essa perspectiva que vai sempre priorizar pagamento de dívida. É uma lógica completamente colonial. Qual é a possibilidade de financiar a políticas públicas ao estar conectado com uma governança global que não é redistributiva, que vai priorizar pagamentos de juros e não reconhece a contribuição dos países do sul global na produção da riqueza? Esses países deveriam ter mais espaço e mais votos.

E você tem a globalização, o neoliberalismo, as políticas de austeridade como pano de fundo ideológico dessas instituições

A gente sempre tem que se perguntar quem é que está lucrando agora. Enquanto a gente está conversando, as pessoas que são milionárias só durante esse período da nossa conversa estão se tornando cada vez mais ricas mesmo num contexto de austeridade. E o que tem acontecido com as pessoas mais pobres? Elas voltam para a condição de linha da pobreza, de insegurança alimentar. Então essas políticas estruturam e fortalecem a desigualdade.

O relatório aponta para o pagamento de quase de quase um trilhão de dólares por ano do sul para o norte, ou mais ou menos 30 milhões por hora. Como se compõe esses valores?

Dívidas, juros, empréstimos; parte dos lucros e dividendos de empresas não permanecem no sul global; a fuga de capitais, a apropriação do trabalho. Os países do sul continuam dentro da estrutura da governança econômica mundial, buscando desesperadamente empréstimos que contraem e já pagam, porque há um pagamento de juros exorbitante e no curtíssimo prazo, o que compromete a economia desses países. O funcionamento dessas empresas nos países, sobretudo as big techs, não significa necessariamente desenvolvimento, porque a grande parte do capital volta para as suas matrizes.

A dominação colonial também é reforçada pela relação entre as elites do sul global com o Norte? O relatório aponta que 39% dos líderes globais estudaram nas mesmas universidades. É um pequeno grupo de privilegiados com a mesma formação, subjetividades. 

Exato. Essa é a colonialidade. Muitos processos de independência são protagonizados por essa elite local, que garante lucros ao Norte. O Haiti é um grande exemplo, um processo de independência que não foi protagonizado por uma elite. Existe um sistema global que sancionou e segue sancionando esse país.

As alianças entre as elites locais e as elites do Norte global seguem, e o mapeamento da riqueza nos mostra exatamente isso. A era digital possibilita que novas elites surjam, mas existe uma aliança ideológica para o controle sobre a riqueza.

O relatório faz uma análise e um diagnóstico certeiros e didáticos. Mas a parte final, das recomendações, me soou quase um texto final de uma COP, ainda que por exemplo, sugira alianças dos países do sul e a taxação dos super-ricos. Exigir comprometimento de governos e corporações do norte não é utópico?

Nesse ponto talvez o relatório tenha colocado quase como a utopia de Galeano [Eduardo Galeano, jornalista uruguaio], aquela linha no horizonte que nos impele a continuar caminhando. A gente quer fortalecer as mobilizações da sociedade civil para que tenhamos governos comprometidos com o processo decolonização. O setor corporativo tem uma lógica outra, como processos de representação toda vez que se identifique uma violação de direitos humanos. O nosso processo sempre é construído a partir do diálogo e da cooperação, mas também entendendo que existem mecanismos e ferramentas dentro do sistema democrático que nos possibilitam empurrar essas forças para esse compromisso.

Em um primeiro momento, vi uma hierarquia nessas recomendações, e ela seria de cima para baixo. Mas os elementos do relatório servem justamente para movimentos sociais terem mais argumentos em suas lutas, não?

Ontem a gente fez uma apresentação do trabalho e um companheiro fez exatamente essa leitura. Ele enviou o relatório para todas as pessoas que estavam em Brasília numa reunião de interconselhos, porque achava ser fundamental para fortalecer a argumentação. Porque está muito nítido, são dados incontestáveis. É uma dimensão de combater essa visão negacionista, esse imaginário de que está tudo bem, é para ser assim, a meritocracia, eu acho que tem questões ali que são facilmente desmanteladas. E acho que isso promove o acesso a argumentos muito contundentes, pontos que são vitais na luta por acesso a direitos.

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