A condoída arte de morar pendurada em perna de pau

A casa mais inesquecível da minha vida era torta como uma Torre de Pisa. Era uma palafita coberta de palha quase à margem do Rio Guamá, em Belém/PA. Tinha duas entradas, uma pela birosca, onde o dono, seu Quelé, vendia pinga e tabaco, e outra pela portinha lateral que dava direto na sala. As tábuas eram escuras de tão velhas; o telhado, de palha. Não havia nenhum móvel. Nos dois quartos, duas redes enroladas e duas caixas grandes de madeira, como baús de boca aberta, onde se guardavam os panos – roupas, toalhas, lençóis.

Dona Dica sempre estava na cozinha, no jirau lavando louça ou no fogão preparando o almoço. Todo o mobiliário consistia em uma mesa e dois bancos. Era uma cabocla de pele clara, cabelos pretos, longos e lisos (sempre escondidos em coque) e feições comuns à região: rosto redondo, olhos levemente puxados como os de um asiático. Silenciosa e um tanto desconfiada. Eu passava horas vendo-a ir do jirau para o poço onde pegava água, do poço para o fogão, do fogão para o jirau onde lavava a louça. Quase não dizíamos palavra, era um silêncio compartilhado.

Fui criada em uma palafita e cercada por elas. A uns 200 metros da casa torta, havia uma vila enorme de casinhas de perna de pau em área alagada pelo rio. Eram interligadas por pontes estreitas, da largura de duas madeiras em sentido longitudinal. As portas estavam sempre abertas. Toda a casa se resumia a um grande salão com janelas, um jirau ao fundo, redes dobradas nos armadores na parede, mulheres e crianças sentadas no chão.

Parece descrição das profundezas da Amazônia, mas é uma cena urbana de meados do século XX. E que persiste até hoje em Belém e Manaus, as duas cidades com maior número de favelas no Brasil. Embora fique condoída com a miséria eterna da minha rua, a cada vez que volto à Estrada Nova, em Belém do Pará, sinto esplendoroso espanto. O modo e as condições de vida da minha infância, ou seja, de mais de 60 anos atrás, continuam do mesmo jeito, como se o tempo tivesse parado ali, naquele momento e lugar onde comecei a viver. Como se eu entrasse num cenário real de um passado presente.

Desde a minha infância, o Brasil construiu uma nova capital em assombrosos mil dias, ergueu algumas das maiores hidrelétricas do mundo, pavimentou milhares de quilômetros de rodovias, teve uma ditadura de mais de 20 anos e depois retomou a democracia mas quase nada mudou na minha rua de criança. É bem verdade que, nos últimos anos, as obras de drenagem, saneamento e pavimentação da Estrada Nova avançaram bastante. E o corre aumentou por conta da COP30, que será em Belém, em novembro deste ano. Mas as casas suspensas continuam a pontilhar as margens do rio.

As palafitas estão na pré-história das populações ribeirinhas e em áreas alagadiças no mundo inteiro. Dizem até que Veneza começou com casinhas de perna de pau. Há registros arqueológicos de mais de sete mil anos encontrados na Suíça. E persistem nas regiões pobres com uma arquitetura cristalina, feita apenas do absolutamente necessário para existir sobre as águas e abrigar as mulheres, os homens, suas crianças e seus bichos.

Joaquim Cardozo, o engenheiro calculista das obras de Oscar Niemeyer, poeta modernista maior, atribuía à arquitetura popular das favelas, dos mocambos e às palafitas “os valores sentimentais da arte popular”. Há uma engenhosidade criativa na arte de construir de improviso o lugar de morar. O meu tinha pernas de pau e parecia voar.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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