“O segmento alimenta a necrofilia”, diz maquiadora funerária

O Brasil foi marcado em 2020 pelo caso conhecido como “Festa no IML”, uma série de denúncias que envolviam pessoas que abusavam sexualmente de cadáveres femininos em Institutos Médicos Legais (IMLs) e em funerárias. Na época maquiadora funerária e tanatopraxista, Nina Maluf foi uma das responsáveis por denunciar violações do corpo feminino após a morte.


O que aconteceu

  • Nina Maluf denunciou ao Ministério Público e à Polícia Federal os membros e administradores do grupo “Festa no IML”.
  • No grupo, diariamente eram compartilhados relatos e incentivos à prática da necrofilia.
  • Na época, após a denúncia se tornar pública, um perfil apontado como criador do grupo no Facebook se manifestou dizendo se tratar de um conteúdo de humor.

Nina explica que começou a ter uma visão diferente do que ocorria dentro da sua profissão ao observar a movimentação estranha de alguns profissionais quando morriam mulheres bonitas e jovens.

“A partir dessas observações, acabei descobrindo grupos de WhatsApp, Telegram e Facebook e tomei a iniciativa de denunciar. Na época, fui demitida e recebi diversas ameaças de morte”, conta profissional. A área em que Nina atuava é a tanatopraxia, que consiste em oferecer cuidados póstumos aos corpos dos mortos, preparando-os para velórios, funerais e sepultamentos.

Apesar de estar afastada do setor, Nina deixa bem claro que continua recebendo denúncias de materiais criminosos que seguem rodando nas redes sociais.

“E não é algo que só parte dos homens, encontrei inclusive mulheres que vendem esses materiais. Um caso que me chocou foi quando a Marília Mendonça morreu. Vi uma grande mobilização do público feminino pedindo para que vazasse fotos das partes íntimas da cantora.”

Nina diz que o próprio segmento funerário está acessível para alimentar pessoas mal intencionadas. Já quem não tem acesso ao cadáver consegue consumir por meio de conteúdos vazados.

“A mesma cadeia da pedofilia acontece com a necrofilia. Do mesmo modo que existe o tráfico, porque há alguém consome, só existem sites e plataformas com conteúdos necrófilos porque há quem os consuma. Existem muitos conteúdos pornográficos que simulam mulheres mortas. E, na deepweb, em diversos (sites) elas realmente estão.”

Mesmo diante de toda a transformação que a vida de Nina sofreu após levantar a bandeira da causa contra a violência aos corpos femininos mortos, ela afirma não se arrepender.

“Sempre fui muito convicta do que é certo e do que é errado, nunca me permiti me calar. A única pessoa que sofreu consequências severas nessa história fui eu mesma, quem estava fazendo coisa errada continua impune por aí. Sigo trabalhando e inclusive em outra área, agora sou da perícia (judicial) e isso foi uma forma de preservar meus filhos e minha família. Eu não me arrependo, faria novamente e talvez seria até mais radical nas denúncias.”

Necrofilia é parafilia

O psiquiatra Frederico Dib explica que a necrofilia se encaixa no que a psiquiatria diz ser uma parafilia.” O próprio termo, etimologicamente falando, significa algo que é fora do comum, fora da função real, ou a da principal função. E a parafilia seria isso, um desejo fora do padrão.”

Frederico conta que nem toda parafilia é um transtorno psiquiátrico. É preciso que ela seja socialmente inaceitável ou gere um prejuízo para a pessoa que possui esse desejo distorcido. “Um exemplo é o sadomasoquista, quando um homem sádico se relaciona com uma mulher masoquista, existe um consenso que de certa forma está funcionando ‘bem’.”

O psiquiatra alerta que a necrofilia já é considerada um problema de uma escala muito grande para o portador da parafilia, a vítima e a sociedade.

“Esse desejo sexual por mortos envolve uma questão de crime, que é a violação, a profanação de mortos. Quem possui essa parafilia se torna refém dela, e aí tem um grave problema. Porque ou ele vai buscar pornografia nesse sentido para uma realização masturbatória do desejo ou a prática propriamente dita, que vai ser violar os cadáveres. Com isso, temos a dimensão do quão bagunçado é o desejo sexual dessas pessoas.”

Crime de vilipêndio de cadáver

O advogado Roberto Postiglioni explica que existe um grande embate jurídico entre os doutrinadores no que diz respeito a necrofilia ser punida com o art. 212 do Código Penal, que define o que é vilipêndio de cadáver.

“Existem os que entendem que o simples fato do sexo com cadáver já caracteriza o crime e os que defendem que, pelo necrófilo só sentir prazer sexual com cadáver, o que é um transtorno mental (parafilia sexual), mas não tendo a intenção de prejudicar ou ofender a imagem do falecido, não estaria cometendo o delito, afastando a aplicação do crime de vilipendio ao cadáver para os casos de necrofilia.”

No entanto, Postiglioni diz que a jurisprudência “é consolidada no entendimento de aplicar o crime de vilipêndio ao cadáver para necrófilos, podendo estes obterem laudo pericial para serem considerados inimputáveis, afastando a condenação criminal, mas aplicando o tratamento médico adequado”.

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