De novo o semipresidencialismo (por José Dirceu)

De tempos em tempos ressurge, ressuscitada, a emenda constitucional do semipresidencialismo. Como sabemos, o parlamentarismo foi imposto ao Brasil em 1961 depois de uma tentativa de golpe militar, derrotada pela resistência de Leonel Brizola e mobilização nacional em nome da famosa “rede da legalidade”, com manifestações populares em todo o país.

Jango Goulart tomou posse e o Brasil viveu uma experiencia patética de parlamentarismo. Convocado o plebiscito para julgá-lo, o povo, por 2/3 de votos, o enterrou. Já na década de 1990, de novo o parlamentarismo foi proposto, ao lado da monarquia, e ambos foram derrotados.

Não sei se é síndrome do fracasso da direita com seus três presidentes, um pior que o outro – Jânio Quadros, Fernando Collor de Mello e Jair Bolsonaro – ou medo de uma nova derrota em 2026, o fato é que temos de novo a volta do parlamentarismo ao debate público, agora travestido de semipresidencialismo.

Talvez seja um golpe branco para completar o avanço do Poder Legislativo sobre as atribuições constitucionais do Executivo, via emendas impositivas secretas, via Pix, hoje já negociadas em leilões por intermediários nas portas das prefeituras ou nos corredores da Câmara dos Deputados, com tabelas para comissões. Esses intermediários se transformaram em verdadeiros cabos eleitorais para eleger prefeitos e vereadores em 2024. Em 2026 serão eleitos deputados e senadores possivelmente da mesma forma.

Aos poucos foram desvendados pelo controle constitucional, que o próprio Legislativo devia realizar, via Controladoria-Geral da União (CGU), Tribunais de Contas, Ministério Público, mídia e entidades da sociedade civil, casos de desvio de recursos, má aplicação ou simples desperdício ou mesmo meio para angariar apoio eleitoral de artistas populares, que se enriquecem com os absurdos cachês, via shows e festivais. E o mais grave: indícios de enriquecimento ilícito de parlamentares, prefeitos, assessores e intermediários, quando não escritórios que negociam emendas com ágios e deságios, comissões e compromissos eleitorais.

As emendas impositivas, por si, podem e devem existir, mas da forma como estão sendo realizadas na prática vão promover a degradação do nosso sistema eleitoral e da própria democracia.

Golpe parlamentar

Democracia que pode ser abalada por essa proposta de semipresidencialismo. A proposta pode parecer irreal ou fantasiosa, mas deve ser tomada a sério como um meio para chegar ao Executivo sem eleições diretas para presidente, já que, das últimas seis disputas, o PT e seus aliados liderados por Lula venceram cinco. A única eleição que o PT perdeu foi graças a um golpe parlamentar judicial e a guerra jurídica da Lava Jato.

Uma vez que não conseguem eleger o presidente, sugerem acabar com a eleição, pondo fim ao presidencialismo sob o pretexto de que, na prática, já o estamos vivenciando, ou ainda sob o argumento de que nossa Constituição é, no fundo, de inspiração parlamentarista.

Os artífices da ideia só não explicam como seria esse presidencialismo com o sistema bicameral, ainda que mantendo atribuições próprias da Presidência: relações exteriores, comando das Forças Armadas, guerra e paz, e o poder de sancionar ou vetar leis, nomear ministros do Supremo Tribunal Federal e dos demais tribunais, os chefes de missão diplomática, diretores do Banco Central, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União.

Todos eles, como sabemos hoje, dependem da aprovação do Senado, ou seja, o presidente não teria poder nenhum, exceto o de dissolver a Câmara dos Deputados em caso de grave crise política institucional (sic), e de convocar o Congresso.

A proposta surge ao mesmo tempo em que o presidente eleito da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), diz que não houve tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023, enquanto abre espaço na agenda legislativa para a malfadada anistia.

Em sua tese, como não houve tentativa de golpe – apesar de investigações, indícios, provas e depoimentos apontarem o contrário, além de um plano para assassinar o presidente, o vice-presidente e um dos ministros do STF e mais um quarto ainda não identificado – a anistia seria um caminho natural.

É preciso que o novo presidente da Câmara assista aos vídeos que mostram a destruição das sedes do Poder Legislativo para compreender a gravidade de sua afirmação. Ela é quase uma blasfêmia perante a Constituição que ele jurou defender. Fazer acenos ao bolsonarismo, mencionando a anistia para quem apoiou abertamente o atentado direto do trumpismo à democracia norte-americana, é um aviso do que nos espera se não reagirmos.

Se olharmos para os Estados Unidos e para o apoio que o ex-presidente Jair Bolsonaro seus filhos Flavio, Eduardo e Carlos dão às medidas adotadas por Donald Trump, propondo inclusive que sejam aplicadas no Brasil, temos um cenário da gravidade das propostas que visam anistiar golpistas ou simplesmente buscar uma via que usurpa o poder soberano popular na escolha do presidente ao pôr fim ao presidencialismo.

Reforma política institucional

O país precisa de uma ampla reforma política institucional, começando pela eleitoral, estabelecendo de fato a fidelidade partidária e o voto proporcional à população ou eleitorado de cada Estado. Com isso se poderá pôr fim à regra atual de o mínimo de 8 deputados e o máximo 70, algo que só existe no Brasil. Foi um casuísmo da ditadura militar para manter a maioria na Câmara dos Deputados e no Colégio Eleitoral, que à época escolhia o presidente da República.

O passo seguinte é mudar o atual sistema uninominal de eleição de deputados e vereadores e substituí-lo pelo sistema proporcional misto, no qual o eleitor vota duas vezes: uma no distrito e outro na lista de candidatos de um partido, calculando o número de deputados pelo voto na lista, ou seja, proporcional à votação de cada partido. Daí o nome de misto proporcional, uma forma de aproximar parte da Câmara ao eleitor e seu distrito.

Hoje, além da limitação de 8 e 70 deputados, temos um sistema que um parlamentar disputa o voto com outro de seu próprio partido, já que os mais votados são os que ocupam as vagas que a legenda tem pela soma da votação na legenda e nos deputados.

Apesar das mudanças recentes, como o fim da coligação proporcional e regras para evitar que a expressiva votação de um levasse junto deputados com poucos votos, o sistema continua contrário ao espírito da proporcionalidade e da representação de cada Estado, uma vez que a Câmara dos Deputados representa a nação e o Senado Federal, daí o nome, a Federação. Com um traço particular do Brasil: aqui o Senado também é Câmara Alta e tem poderes para além desse papel.

A crise que o Brasil vive na relação entre os Poderes existe em todas as democracias e expressa contradições e interesses da sociedade e de um período histórico. Mas não se resolve essa crise mudando o sistema de governo. Não se pode resolver divergências e conflito de interesses sociais, econômicos e políticos, dos rumos da política econômica e do desenvolvimento do país, da divisão da renda nacional, do papel do Estado e da nossa posição no mundo mudando o sistema de governo.

Só a disputa política e eleitoral, o debate democrático, a participação social e a organização da sociedade, a luta em defesa dos interesses nacionais ou de cada classe social, dentro do contrato constitucional, é que pode e deve ser o caminho para resolver as crises e conflitos sociais e econômicos. É a política e não a forma de governo.

Faço essas observações partindo do princípio constitucional de que uma mudança no sistema de governo exige um plebiscito ou um referendo, o que seguramente será um desvio e uma perda de tempo. Se é para enfrentar a crise de identidade do Parlamento ou do país em busca de rumos, o caminho legal seria o de convocar uma Assembleia Constituinte para, como em 1946 e 1988, reorganizar o Estado e seus fundamentos e decidir que Brasil queremos no século 21 e qual nosso lugar no mundo.

  • José Dirceu é ex-ministro-chefe da Casa Civil, ex-deputado federal e ex-deputado estadual pelo estado de São Paulo
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