Denúncia prova que 8 de janeiro era parte de plano golpista de Bolsonaro, diz criminalista

O principal mérito da denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e membros da alta cúpula do seu governo e militares foi ter conseguido provar a conexão entre os ataques do 8 de janeiro às movimentações golpistas anteriores que culminaram no ato. Essa é a avaliação do coautor do livro Crimes contra o Estado Democrático de Direito, o advogado criminalista Rafael Borges.

Em entrevista para a Agência Pública, ele afirma que a partir dessa narrativa, apresentada de “maneira minuciosa”, a PGR consegue sustentar que Bolsonaro praticou os crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado. 

Os dois delitos foram incluídos no Código Penal em 2021, após aprovação  no Congresso Nacional e sanção do próprio Bolsonaro, em substituição à Lei de Segurança Nacional (LSN), remanescente da ditadura militar.

Por que isso importa?

  • A denúncia de Bolsonaro por crime de abolição violenta do Estado Democrático e golpe é inédita na democracia recente e pode levar a mais de 30 anos de prisão para o ex-presidente.

Borges ressalta que a peça da PGR comprova que o 8 de janeiro não foi fruto de uma ação popular espontânea, mas “a face violenta desse conjunto de preparativos, articulações de conjunturas, de maquinações que vinham sendo feitas desde 2021”. “Esse é o grande mérito da denúncia”, ressaltou. 

“O que transforma a conjectura golpista num tipo penal é o ato violento ou uma grave ameaça. E a violência e a grave ameaça estiveram claramente presentes no 8 de janeiro. Por isso, era importante conectar os acontecimentos”, acrescentou.  

Leia abaixo trechos da entrevista à Pública.

A denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro se sustenta para ser recebida pelo Supremo Tribunal Federal? 

A denúncia imputa ao Bolsonaro e aos corréus o crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, o crime de golpe de Estado, o crime de dano qualificado e o crime de associação criminosa. 

O principal mérito da denúncia, que era até uma coisa que me preocupava bastante, é que a PGR faz uma descrição muito minuciosa dos fatos, dos acontecimentos que redundaram no 8 de janeiro, dos fatos anteriores ao 8 de janeiro. Isso realmente foi muito importante. 

Por quê?

Porque o 8 de janeiro, analisado de forma absolutamente isolada de seu contexto, parece meio uma pataquada. Ele parece uma coisa meio descoordenada, sem nenhum sentido. Um monte de gente apareceu lá em Brasília de ônibus e resolveram quebrar equipamentos das instituições brasileiras: o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal. 

Então, o 8 de janeiro, olhado isoladamente, até pode ser defendido como um crime possível, como quis qualificar o Hugo Motta [presidente da Câmara dos Deputados], recentemente. Qual seria a potencialidade do 8 de janeiro se ele fosse um fato isolado? Seria mais uma manifestação pública, claro que muito danosa ao patrimônio público, mas aquilo não estaria dentro do contexto do golpe de Estado. 

O que coloca o 8 de janeiro dentro do contexto do golpe de Estado é exatamente o resultado das investigações, que estão muito bem reproduzidas no texto da denúncia, que estabelecem conexão explícita, probatória, clara, inequívoca entre o 8 de janeiro e uma série de outros acontecimentos anteriores.

E é curioso que a PGR coloca como marco inicial dessa trama golpista exatamente a declaração de elegibilidade do presidente Lula. A partir do momento em que o Supremo Tribunal Federal declara nulas todas condenações da Lava Jato que recaíam sobre ele, é a partir daquele momento que o grupo liderado por Bolsonaro começa a articular ideias, ações e conjecturas, voltadas à deslegitimação do processo eleitoral. 

Porque já havia uma certa antevisão de que o governo Bolsonaro ia muito mal e de que o Lula, caso se candidatasse, seria eleito presidente da República. Antevendo esse cenário, a partir da nulidade das condenações do Lula, é que eles começaram a conjecturar, a articular, a praticar uma série de condutas voltadas à concepção [do golpe], e aí a PGR descreve, muito minuciosamente, cada uma dessas ações na peça acusatória. 

Você teve a reunião geral com os embaixadores; você teve a live que o Bolsonaro fez com milhões de pessoas acompanhando; reuniões da cúpula política com comandantes das Forças Armadas para poder enquadrá-los. Inclusive, a PGR atribui a inação do comandante do Exército e da Aeronáutica no insucesso do golpe. O comandante da Marinha está denunciado também porque teria sido um entusiasta. 

Na sua opinião, a PGR conseguiu provar que houve ações efetivas para articular o golpe, que eles foram além de “planos”? 

Com certeza. Não só que houve ações efetivas, muito mais do que isso. Essas ações estavam entrelaçadas, elas estavam interligadas no mesmo propósito criminoso. Elas foram ações claramente executadas na perspectiva de gerar o 8 de janeiro. 

O 8 de janeiro não foi fruto de uma ação popular espontânea. O 8 de janeiro foi a face violenta desse conjunto de preparativos, articulações de conjunturas, de maquinações, que vinham sendo feitas desde 2021. Esse é o grande mérito da denúncia. 

A PGR vai além do relatório da PF ao fazer esse entrelaçamento?

A PGR tem uma narrativa que é muito mais adequada à imputação criminosa que se pretende. Qual o grande insight que a PGR tem? Se você isola o 8 de janeiro, você não tem os preparativos que levaram ao 8 de janeiro. 

Se você também isola os preparativos do 8 de janeiro, você também não tem o crime, porque o crime depende de ação violenta. O crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e o crime de golpe de Estado só podem ser praticados com uso de violência ou grave ameaça. Sem violência ou grave ameaça, você não tem tipo penal caracterizado, tem somente um golpe palaciano, uma maquinação, uma conjectura golpista, mas não vai ter um tipo criminal propriamente dito. O que transforma a conjectura golpista num tipo penal é o ato violento ou uma grave ameaça. E a violência e a grave ameaça estiveram claramente presentes no 8 de janeiro. Por isso, era importante conectar os acontecimentos. 

Se, no 8 de janeiro, você tem a violência e a grave ameaça, nos atos anteriores ao 8 de janeiro, você tem toda a maquinação, toda a conjectura, toda a estruturação intelectual daquela tentativa de golpe. Então, ter juntado os dois episódios foi muito importante por causa disso, e a denúncia fez isso com maestria. Ela apresenta isso de forma muito clara, de forma inequívoca. 

A denúncia apresenta evidências muito robustas, muito convincentes de que o 8 de janeiro foi um desdobramento das conjecturas. Inclusive, prova que o Mauro Cid disse que o Exército tinha que aderir às ruas. Ou seja, dias antes da coisa acontecer. 

O próprio Anderson Torres viajou para os EUA, provavelmente numa estratégia de fazer aquela omissão deliberada parecer ir contra sua anuência prévia sobre o golpe. O tiro saiu pela culatra, porque ficou óbvio que ele saiu de Brasília para que a responsabilidade sobre a omissão não recaísse sobre ele. 

Se estivesse em vigor a Lei de Segurança Nacional, ela também valeria para esse caso, contra o ex-presidente Jair Bolsonaro?

Pegaria porque esses dois crimes, de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e o crime de golpe de Estado, já existiam, não com a mesmíssima redação de 2021, mas já estavam previstos na lei de 1983, que eram os crimes de insurreição. A lei de [20]21 só aperfeiçoa a redação. 

A lei do Estado Democrático de Direito foi sancionada pelo próprio Bolsonaro em 2021, que substituiu a Lei de Segurança Nacional, de 1983. A gente vinha, desde o código imperial, se referindo a leis que eram criadas na perspectiva de proteger a institucionalidade, sempre como leis de segurança nacional ou normas relativas à segurança nacional. A lei de 2021 quebra esse paradigma e é declarada como uma lei de defesa do Estado Democrático de Direito. 

É uma lei importante porque significa um pouco o rompimento da República brasileira com essa lógica de defesa da segurança nacional, de conceito de segurança nacional, que é um conceito antiquado, se você pensar que a gente vive numa democracia.

Em que contexto ela passou em 2021?

O projeto de lei para revogar a lei de 1983 já estava em tramitação no Congresso Nacional pelo menos desde 1990. Porque a lei de 1983 é pré-constitucional. A lei de 1983 foi editada cinco anos antes da Constituição de 1988. Embora em 1983, já era o último governo ditatorial, já se sabia que a redemocratização ainda é uma lei irreverente a valores e princípios típicos de governos autoritários. 

Já havia uma avaliação do Congresso Nacional que a lei de 1983 precisava ser revista. Os congressistas se dedicaram a isso desde 1990. Só que, assim, vários projetos foram apresentados, muitos engavetados. 

Eu acho – e eu digo que é um sentimento mesmo porque não tenho evidência sobre essa minha opinião – que no governo Bolsonaro a classe política de uma forma geral ficou meio apavorada com a iminência de um golpe. O governo Bolsonaro, por exemplo, foi o governo que teve o maior número de inquéritos policiais instaurados para apurar crimes contra a Lei de Segurança Nacional desde o fim da ditadura. Muitos desses inquéritos, inclusive, voltados contra jornalistas e youtubers. Para se ter ideia, o Felipe Neto foi alvo de um desses inquéritos de crime da Lei de Segurança Nacional. 

Então, havia um certo sentimento na inteligência nacional de que o grupo político do Bolsonaro estava usando e abusando dessa lei de 1983, que era uma lei que reverenciava modelos autoritários. 

Para além dessa quantidade muito grande de indiciamentos por crime da Lei de Segurança Nacional, em agosto de 2021, que foi aquele passeio de um monte de tanques de guerra da Marinha na frente do Palácio do Planalto. Aquilo ali me parece que foi a gota d’água, porque foi logo depois daquele evento que o Rodrigo Pacheco [ex-presidente do Senado], provavelmente articulado com Arthur Lira [ex-presidente da Câmara], acelerou a tramitação e mandou para a sanção presidencial, e por sorte [Bolsonaro] sancionou, com alguns vetos, diga-se de passagem. Inclusive, essa lei trazia o crime das fake news. O Bolsonaro vetou esse tipo penal e alguns outros. Mas o núcleo mais sensível da lei acabou sendo sancionado. 

Um dos argumentos da defesa dos acusados é que o STF não tem competência para julgar o caso, uma vez que Bolsonaro não tem mais foro privilegiado.  

O Supremo tem vários entendimentos sobre isso. Não faz o menor sentido você tirar a prerrogativa de foro de uma pessoa só porque ela deixou o cargo. Ela deixou o cargo, mas praticou o crime, em tese, quando estava ocupando aquele cargo. Só porque ele saiu do cargo aquele julgamento vai para a primeira instância? Isso não faz sentido lógico nenhum, mas o Supremo ora vai em um sentido, ora vai noutro. 

Com relação a esse processo, a competência do Supremo está mais relacionada à circunstância de o Poder Judiciário, especificamente do Supremo Tribunal Federal, ter sido, de certa forma, uma vítima indireta desse crime.

Por que uma vítima indireta?

Porque a vítima de todos esses crimes é o Estado Democrático de Direito. O STF é uma das instituições que integram o Estado Democrático de Direito, ele não é o Estado Democrático de Direito. Por isso, eu falo vítima indireta. Então, assim, o que atrai a competência do Supremo para essa história é a circunstância do STF ter sido afetado pelas práticas supostamente criminosas que foram praticadas pelos golpistas.

Há, também, um debate de que o ministro do STF Alexandre de Moraes deveria se declarar suspeito para julgar o caso, uma vez que foi alvo direto dos ataques.

Tem uma regra geral sobre a suspeição que diz o seguinte: “a parte não pode criar a suspeição”. Então, por exemplo, eu moro numa cidade pequena, aí eu atuo num processo criminal qualquer, e eu sei que aquele juiz vai me ferrar. Ele não gosta muito do meu estilo de advogado e vai me ferrar. Aí eu vou num restaurante onde esse juiz está e jogo um copo de chope na cara dele. Aí esse juiz não é obrigado a se declarar suspeito para me julgar porque eu joguei um copo de chope na cara dele. 

A suspeição não pode ser criada pela parte. O Alexandre de Moraes estaria suspeito para julgar o caso se ele tivesse criado a suspeição. De que tipo? Se ele tivesse atacado o Bolsonaro publicamente, se ele tivesse emitido algum juízo de valor fora dos autos, isso talvez o tornasse suspeito para análise dos fatos. Mas não é isso que eu vejo, mas o contrário: o Bolsonaro atacando o Alexandre de Moraes. 

Eu volto a dizer: o bem jurídico referido pelas normas é o Estado Democrático de Direito, o Alexandre de Moraes não é o Estado Democrático de Direito. O fato é que Alexandre de Moraes não está no polo passivo dessas ações; quem está é o Estado Democrático de Direito, embora ele pudesse sofrer efeitos colaterais das práticas.

Essa questão do desmembramento da denúncia foi uma estratégia inteligente da PGR?

Foi estratégico porque vai dar um timing mais acelerado para a tramitação. Você imagina que cada um daqueles réus vai ter uma defesa constituída. Cada um pode arrolar até oito testemunhas por fato imputado a ele. Então, assim, se a defesa usar de fato todos os instrumentos e ferramentas das quais ela dispõe para promover o exercício da defesa ampla, a tendência é que esse processo dure muito tempo. 

Uma denúncia só para 33 é uma coisa que ia emular o mensalão, que foram quase 40 denunciados a que o Supremo ficou dedicado integralmente por não sei quantos meses. 

Qual sua opinião sobre uma possível aprovação do PL da Anistia?

Eu não defendo a inconstitucionalidade do PL da Anistia. E acho que o ato de anistiar criminosos é um ato mesmo privativo do Congresso Nacional, que tem previsão expressa no texto constitucional. O Congresso Nacional brasileiro pode anistiar pessoas acusadas ou condenadas pela prática de crimes. Eu até acho que um governo de orientação progressista, como o governo Lula, deveria se utilizar muito desse instrumento porque é importantíssimo e potente do desencarceramento. É algo que permite um reequilíbrio de poderes da República. 

Há um reconhecimento hoje quase inédito de que o Brasil prende muita gente. Usando da anistia para tirar essas pessoas da cadeia, porque há uma superlotação carcerária e [alguns] desses crimes não são tão graves, é uma medida inteligente. É uma medida que um governo de orientação progressista deveria colocar em prática. É um erro que não coloque. É um erro crasso. 

Isso é uma coisa. Outra coisa é você se valer de um instrumento com previsão constitucional para fazer um movimento que tem uma carga fortíssima de inconveniência política.

Por que é politicamente inconveniente anistiar os golpistas? Primeiro, por uma razão: eles atentaram contra valores muito caros à República brasileira. E estamos falando de uma República redemocratizada a partir de 1988.

Esses golpistas atentaram contra o que de mais importante a gente tem como conquista geracional das últimas décadas: o restabelecimento do regime democrático. Isso já é um motivo que aponta para a inconveniência política da anistia.

Mas o outro motivo também é o seguinte: essas investigações ainda estão em curso. Ninguém hoje é capaz de descartar para mim que essa tentativa de golpe, por exemplo, não teve participação de potências estrangeiras. 

Ninguém sabe até hoje o nível de envolvimento das Forças Armadas, das polícias militares estaduais, dos governadores dos estados mais importantes que são ligados ao Bolsonaro.

Há uma série de investigações em curso que precisam ser concluídas e que, se você anistia, você passa uma borracha e isso acabou. E você fica sem saber o que aconteceu nesse pedaço da história do Brasil. A gente não pode repetir os erros da redemocratização. Aquela lei de anistia, de 1979, que passou uma borracha em tudo, inclusive nos torturadores.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.