Quatro pontos para entender a guerra de Trump e Rumble contra Moraes

Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Xeque na Democracia, enviada toda segunda-feira, 12h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui.

Se você passou o fim de semana pulando nos bloquinhos do pré-Carnaval, aqui vai um resumo rápido: no sábado, a rede social de vídeos de extrema direita Rumble foi suspensa no Brasil depois de Alexandre de Moraes ter determinado a medida e a Anatel notificado mais de 20 mil operadoras e provedoras de internet. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) havia pedido a suspensão das contas de Allan dos Santos, hoje foragido nos EUA, e exigido que a empresa nomeasse um representante no Brasil, assim como fez com o Twitter no ano passado. A Rumble não obedeceu. 

Mas Moraes também respondia a uma provocação da Rumble e do próprio presidente norte-americano, Donald Trump, na semana passada.  

Horas depois de Jair Bolsonaro ter sido denunciado pela PGR, no dia 19 de fevereiro, Trump demonstrou sua insatisfação: sua empresa Trump Media & Technology Group, conhecida como TMTG, que controla a rede social Truth Social, processou Moraes junto à Rumble em uma corte na Flórida por considerar que as decisões do STF ferem o direito americano à liberdade de expressão, a famosa Primeira Emenda. As empresas pedem que a Justiça americana determine que Moraes não pode mandar nelas, uma vez que têm sede nos EUA, mesmo que forneçam serviços no Brasil. O timing diz tudo. 

Agora, depois da suspensão da Rumble, as empresas pediram uma decisão liminar castigando Moraes com efeito imediato e temporário. 

Se você já sabia de tudo isso, então vamos entender um pouco melhor as nuances por trás dessa batalha. 

Minha primeira observação é que a ação de Trump não chega perto do que esperavam os bolsonaristas, considerando as repetidas viagens de Eduardo Bolsonaro aos EUA para pedir sanções econômicas, na esperança de impedir a prisão do seu pai. 

(Aliás, dias depois da denúncia, lá estava ele de novo na Flórida, na conferência CPAC, em que denunciou a “censura” e a “ditadura” inventadas pela direita e pediu anistia aos golpistas de 8 de janeiro. Trump, no seu discurso, fez um aceno à família Bolsonaro, “uma família muito boa”, chamando “meu amigo” Eduardo pelo nome e dizendo: “Mande um oi para seu pai”.)

Mas não houve tarifas amalucadas nem ameaças de sanções por parte do governo americano. 

Ponto dois. O que houve foi uma ação judicial vazia, sem consistência legal, mas que deve ser lida como, ao mesmo tempo, a criação de um fato político; produção de conteúdo para redes extremistas; e um recado claro do presidente americano (assim como o “oi” a Bolsonaro).

No tom “Maga”, a petição traz ilações conspiratórias que vão além de ofensas contra Moraes. Por exemplo, observa que ele “ascendeu ao STF após um acidente de avião que matou seu predecessor, o ministro Teori Zavascki”, que, por sua vez, “estava à frente da Operação Lava Jato, uma investigação de múltiplos bilhões de dólares central para a luta contra a corrupção no Brasil” – uma sugestão que funciona como “dog whistle” para conspiracionistas. Diz, ainda, que o ministro tomou posse “embora o ministro Moraes não tivesse experiência prévia como juiz”.

Depois, acusa Dias Toffoli de abrir o inquérito das fake news “três dias depois” de uma matéria da revista Crusoé que o relacionava às propinas da Odebrecht, arrastando outro ministro para o centro da conspiração. 

Mais adiante, a empresa de Trump força um pouco mais a barra, acusando Alexandre de Moraes de esquivar-se de usar sistemas de cooperação internacional para pedir o cumprimento da ordem de banimento e, em vez disso, “fabricar jurisdição através de coerção”. O principal argumento é que a Rumble não deve nenhuma explicação à Justiça brasileira, por estar sediado na Flórida, nem deve ser obrigada a ter representação no país. 

Aliás, os advogados do presidente chamam Allan dos Santos de “dissidente político A”.

Os advogados dão ainda uma forçada de barra técnica que não enganaria ninguém com um mínimo de compreensão de como funciona a internet. Dizem que, “como o sistema de infraestrutura da Rumble é integrado globalmente, uma suspensão do serviço no Brasil dificultaria a capacidade da Rumble de atender totalmente os usuários dos EUA, interrompendo a liberdade de expressão”. Ora, a suspensão é apenas o bloqueio de uma URL por provedores brasileiros – não tem nada a ver com o “sistema integrado” da Rumble! E vai por aí também o raciocínio adotado para explicar por que a empresa do presidente americano participa na petição. Dizem as reclamantes que “a Truth Social depende da infraestrutura de hospedagem em nuvem e transmissão de vídeo da Rumble para fornecer conteúdo multimídia à sua base de usuários. Se a Rumble for suspenso, essa suspensão interferiria necessariamente nas operações da Truth Social”. Mais uma vez, bobagem. Se a Truth Social quer operar no Brasil, que adote uma plataforma de vídeos que opere legalmente no país.

Agora vamos ao ponto três. O trecho mais eloquente da petição vem da comparação entre as decisões de Moraes e a decisão do Tribunal Penal Internacional (TPI) de pedir a prisão do presidente israelense, Benjamin Netanyahu, por crimes contra a humanidade. Através da Ordem Executiva 14203, Trump ordenou o congelamento de ativos financeiros e a proibição de viagens contra funcionários do TPI e até de seus familiares.

Chamando as decisões do STF de extensão “unilateral e ilegalmente da autoridade judicial brasileira aos Estados Unidos” e de “censura extraterritorial”, os advogados de Trump elaboram um roadmap para como penalizar Alexandre de Moraes, pessoalmente, a partir desse precedente do TPI. 

“As táticas extrajudiciais do Ministro Moraes também entram em conflito direto com a política pública dos EUA, conforme articulado na Ordem Executiva 14203, emitida pelo Presidente Trump no início deste mês. A EO se opõe a excessos judiciais estrangeiros que buscam impor jurisdição sobre entidades norte-americanas sem consentimento. Ao coagir a Rumble a nomear advogados brasileiros e ameaçar ações punitivas caso não cumpra, as ações do Ministro Moraes espelham o tipo de conduta extraterritorial condenada pela EO”, diz a petição.

Segundo os advogados da empresa de Trump, “os paralelos entre as ações do Tribunal Penal Internacional (TPI) condenadas na OE 14203 e a conduta do Ministro Moraes são impressionantes”, diz o texto. “A Ordem Executiva enfatiza ainda que o excesso judicial estrangeiro não é apenas uma questão processual, mas uma ameaça substantiva aos Estados Unidos”. Para eles, “as ações do Ministro Moraes, se não forem controladas, criarão um precedente perigoso no qual tribunais estrangeiros poderiam rotineiramente impor suas leis a empresas norte-americanas”.

A petição sinaliza as punições estabelecidas pela Ordem Executiva. Entre eles, sanções econômicas, congelamento de bens e proibições de viagem. E os advogados pedem sutilmente que elas sejam consideradas, com uma piscadela, repetindo algumas vezes que o tribunal deve decidir pelas ações de remediação que sejam mais que apenas compensações financeiras. 

Mas há outra faceta dessa briga que nos interessa, e muito. Nosso quarto ponto é sobre o Trump Media & Technology Group, cujo principal negócio é a rede social Truth Social. 

Depois de ler o seu relatório anual de 2024 e escarafunchar a internet como jornalista obcecada, posso dizer, sem pestanejar e com a liberdade literária que meus advogados permitem, que há indícios de que a corporação seja nada mais que uma empresa de fachada, construída para poder servir ao projeto político de Trump

Vejamos. Lançada em 2021, ela tem hoje pouco mais de 6 milhões de usuários ativos. O número é absolutamente pífio se comparado com o Facebook, que tem 3 bilhões, o YouTube, com 2,5 bilhões e o WhatsApp e Instagram, que têm 2 bilhões cada um. Até a Rumble tem mais de 50 milhões. O próprio Trump, de longe a única conta que importa na rede, não chega a ter 10 milhões de seguidores – seus frequentes posts alcançam a vergonhosa marca de 2 a 4 mil likes. Para se ter uma ideia, Trump tem mais de 100 milhões de seguidores no Twitter e Elon Musk, mais de 200 milhões – não é à toa que o republicano voltou a usar o Twitter, coisa que prometeu que não faria. 

A rede, portanto, é um retumbante fracasso naquilo que se propõe a ser. Uma rede social sem gente.  

Entretanto, a empresa segue firme e forte, segundo o relatório anual de números esquisitíssimos. Segundo o documento, a TMTG saiu de 2023 com um capital em caixa de 2,6 milhões de dólares para encerrar 2024 com 777 milhões – isso sem ter demonstrado nenhum avanço de fato em seu principal negócio. Ah, claro: há muitos planos, como um serviço de streaming em vídeo, uma fintech de serviços financeiros, adoção de e-commerce na plataforma vazia. O “salto” tem uma razão de ser: em 2023, a TMTG abriu seu capital, permitindo que as ações da empresa do futuro presidente fossem compradas por quem quisesse lhe fazer um agradinho. 

É o mesmo que fez a Gettr, lançada pelo escudeiro de Trump, Jason Miller, em julho de 2021. Embora tenha ainda menos usuários que a Truth Social, a Gettr financiou alguns eventos produzidos por Eduardo Bolsonaro através do seu Instituto Conservador Liberal, como revelamos na Agência Pública. Uma transferência de recursos que não se sabe de onde vem e que pode, inclusive, ter violado a lei eleitoral brasileira. 

Mesmo estando em fase de testes para uma plataforma de vídeos própria, a Truth Social reforça a aliança com a Rumble no processo contra Moraes, pois é o que permite incluir o carimbo do presidente dos Estados Unidos em um factoide na Justiça americana, como forma de intimidação ao juiz. É possível que, na promessa de Trump de lutar pela “liberdade de expressão (melhor dizendo, “liberdade de opressão”), ele passe a usar a Truth Social como braço judicial ou “balão de ensaio” de operações de combate que podem vir depois a ser depois adotados pelo seu governo, como as tais sanções com que tanto sonham os bolsonaristas.

Ou, então, será apenas mais um factoide, desta vez usando a Justiça americana para criar manchetes que se esfumaçam no nada. 

Adicionar aos favoritos o Link permanente.