Quem tem medo de Virgínia Bicudo?

Negras e negros sempre lembram da primeira vez que foram alvejados pelo racismo. Muitas vezes, é na escola que se descobre esse campo de batalha, essa trincheira tatuada na existência. Virgínia Bicudo recorda de sua experiência: “Eu fui criada fechada em casa, quando saí para ir à escola, a criançada começou: negrinha, negrinha. Eu nunca tinha ouvido, levei um susto”. Decidiu estudar muito: talvez boas notas ajudassem a escapar do racismo. Era o início da trajetória de uma das principais – e pouco reconhecida – intelectuais do Brasil.

Vamos jogar todas as cartas na mesa. Virgínia Bicudo “foi a única mulher a concluir o mestrado na primeira turma de pós-graduação da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo; foi a primeira psicanalista não médica no país; foi precursora nos estudos sobre as relações raciais no Brasil; foi a única mulher negra a participar, nos anos de 1950, do Projeto Unesco, que estudou a suposta “democracia racial” brasileira”.

Para quem – como eu – pouco conhece da obra dessa paulistana nascida na Luz em 1910, há boa uma introdução no artigo “Relações raciais no pioneirismo sociológico de Virgínia Bicudo” de Ana Paula Vicente de Oliveira, publicado em 2022 na Revistas Lutas Sociais, da Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

O itinerário intelectual de Bicudo tem três alicerces: o impacto pessoal e social do racismo, os estudos em Sociologia e a experiência e a formação em Saúde Mental. Esses elementos são envolvidos por uma personalidade contestadora e por metodologias inovadoras. Seria correto dizer que seu olhar para as relações raciais no Brasil estava à frente de seu tempo?  Parece que sim.

Na Escola Livre de Sociologia e Política, em 1936, começou a trabalhar com o médico Durval Marcondes no curso de Psicanálise e Higiene Mental, voltado para “crianças-problemas” e a influência do lar na formação infantil. Passa a conviver e assistir famílias e crianças no Serviço de Higiene Mental Escolar, fundado por Marcondes. Por isso é considerada “precursora da psicanálise com crianças no Brasil, seguindo os estudos de Melanie Klein”, segundo o estudo.

Esse trabalho aflui na sua tese de mestrado “Estudo de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo”, defendida em 1945. Segundo Oliveira, autora do artigo, Bicudo utilizou uma metodologia inovadora, ouvindo negros e negras para compreender a formação da identidade negra”. Ela entrevistou pais de alunos que atendia no Serviço Escolar, ex-militantes da Frente Negra Brasileira e pesquisou as páginas do jornal “Voz da Raça”, publicação da mesma entidade.

“Converge assim sua formação em Ciências Sociais associada a estudos e experiências no campo da psicanálise para extrair uma maior riqueza de informações para suas análises, vencendo as inibições dos entrevistados em relatar acontecimentos sobre os quais inicialmente prefeririam ficar em silêncio, como as experiências traumáticas relacionadas ao preconceito”, explica Oliveira.

É com toda essa experiência que Bicudo participa, de 1950 a 1953, do estudo sobre relações raciais patrocinado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), o Projeto Unesco. Coordenado pelos sociólogos Roger Bastide e Florestan Fernandes, tinha como o objetivo decifrar as dinâmicas da “democracia racial” brasileira e, quem sabe, replicá-las no mundo.

Impulsionadas pelo Estado Novo, imperavam as ideias da harmonia racial propostas pelo livro Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. A maioria dos sociólogos defendia que o preconceito de classe era a única barreira que negros enfrentavam. Florestan Fernandes considerava que a lenta e difícil integração da população negra na sociedade era uma herança da escravidão. Bastaria ampliar o acesso à educação e ao emprego para que as relações raciais se equilibrassem.

Virgínia aponta a direção oposta. As entrevistas que realizou confirmam ‘o quanto a valorização do branco aprisiona o negro numa imagem alienada (a branca)”. Sua pesquisa “Atitudes dos alunos dos grupos escolares em relação com a cor dos seus colegas” observou os sentimentos e os mecanismos do preconceito.  Quatro mil crianças entre 9 e 15 anos, de 108 escolas públicas da cidade de São Paulo participaram do estudo.

Entre os resultados, as sutilezas do racismo ou a justificativa do preconceito. Nas palavras de Virgínia Bicudo: “os  brancos  procuram esconder a sua  atitude desfavorável para com os pardos e negros de diferentes  formas: uns utilizando-se de expressões como “há  bons  e  maus entre brancos e pretos”, “são todos humanos‟, “o que faz as pessoas diferentes é a educação e a  instrução‟, porém  revelando resistência para aceitar pessoas de cor em alguns aspectos  da vida,  como por exemplo, para cônjuge; outros pronunciando-se abertamente contra os  negros, mas justificando-se pela afirmação de que são perversos, maus, bêbados, desonestos, vagabundos, ladrões e macumbeiros”.

A intelectual verificou a “idealização do branco” como o padrão que determinava as preferências dos alunos e alimentava um discurso da superioridade em relação aos negros e pardos, “demonstrando definitivamente a existência de uma segregação”. Enquanto alguns tentavam justificar um ideal de país, a socióloga destrinchava a realidade. Assim, Virgínia Bicudo ajudou a derrubar o mito da democracia racial.

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