Do luto à lenda: Lauro, o Boi Falou e a luta pelo carnaval

Registro do bloco Leão da Várzea, no início do século XXAcervo Fotográfico do Museu da Imagem e do Som

O carnaval de Campinas tem raízes profundas. O primeiro desfile aconteceu em 1855, quando um homem foi até a Câmara Municipal e pediu a instalação de três coretos no centro da cidade para animar a festa: um no Largo do Rosário, outro em frente ao que hoje é a Igreja do Carmo e o terceiro diante da Matriz Nova, que ainda estava em construção e só seria inaugurada em 1883.

Décadas depois, em 1897, após anos de luto e sofrimento causados ​​por uma epidemia de febre amarela que devastou Campinas, o carnaval voltou como um respiro de alegria. Mas a passagem acabou marcada por uma tragédia.

Durante o desfile, Lauro Franco, o Conde de Luxemburgo, desfilava como o grande protagonista do carnaval campineiro. Herdeiro da poderosa família Franco de Andrade, ligado à nobreza agrícola paulistana, ele era um dos maiores entusiastas da festa. Apaixonado pelo carnaval, investiu generosamente na folia e chegou a fundar o “Clube dos Fenianos”, que se tornaria um dos mais importantes da época.

Relato da morte de Lauro no artigo de autoria de Pelágio Lobo, tratando da morte de Lauro Franco, do Correio Paulistano de 1949Centro de Memória Unicamp

Naquele ano, Lauro foi convocado como um verdadeiro capitão vitorioso. No carro-chefe do desfile, sentado em um trono majestoso de mais de quatro metros de altura. Assim que o carro alegórico deixou o barracão, ao dobrar a primeira esquina, uma depressão na sarjeta fez a estrutura estremecer violentamente. Os animais que puxavam o carro, assustados, deram um tranco. A armação oscilou e, num instante fatal, se partiu. O Conde foi lançado do topo do trono, descendo de ponta-cabeça. O impacto foi brutal.

Lauro foi socorrido às pressas, mas a fratura no crânios era grave demais. Morreu em sua própria casa, cercada pelo lamento de uma cidade inteira.

Sobre Campinas, desceu uma imensa nuvem de luto. Não apenas os ricos e poderosos choraram sua perda, mas também os pobres e miseráveis ​​a quem Lauro tanto ajudou e que agora viam desaparecer uma das poucas figuras que olharam por eles.

O enterro aconteceu em uma sexta-feira Santa e entre as muitas lembranças deixadas pelo Conde, uma frase ecoava como um testamento de sua paixão pelo carnaval. Certa vez, diante das críticas da família pelo dinheiro que gastava na folia, Lauro respondeu, com seu sorriso largo e olhar irreverente:

— “É uma questão de gosto. Eles preferem cavalos e éguas e gastam fortuna em corridas. Eu prefiro o páreo das ‘fenianas’, que além de melhor, é mais barato.

Mas essa não foi a única história que marcou o imaginário da cidade. Campinas também é palco de uma das lendas mais conhecidas da região: a lenda do Boi Falô.

Único retrato do escravo Toninho, falecido em 13 de maio de 1904Reprodução

A lenda do Boi Falô

Segundo o historiador Sidney Lisboa Rocha, existem diversas versões dessa história. Um estudo acadêmico chegou a registrador entre 15 e 20 variações.

A mais conhecida diz que um escravizado chamado Toninho recebeu a ordem de colocar o boi para trabalhar em uma Sexta-feira Santa. Enquanto preparava o animal, ouviu algo inesperado:

— “O boi falô O boi falô que hoje não é dia de trabalhar!

Toninho correu para contar o que havia acontecido. Sua palavra tinha peso, pois era um homem respeitado. A notícia se deixou, e, desde então, aquele dia passou a ser ainda mais sagrado.

Mas há detalhes curiosos sobre essa história. Ao que tudo indica, Toninho já não foi mais escravizado na época do ocorrido. O Barão Geraldo de Rezende alforriou seus cativos antes de 1888, e Toninho se tornou capataz da fazenda. Como alguém em posição de autoridade, dificilmente inventaria desculpas para não trabalhar.

O túmulo de Toninho fica ao lado do túmulo do Barão Geraldo de Rezende, no Cemitério da Saudade, em Campinas Divulgação

Outro fato intrigante é o Cemitério da Saudade. O túmulo de Toninho fica ao lado do Barão. Enquanto o do fazendeiro é grandioso e imponente, o do antigo escravo é simples, sem adornos. Mas há uma grande diferença: o túmulo do Barão permanece esquecido, enquanto o de Toninho está sempre cheio de plaquinhas de agradecimento por graças alcançadas.

Na vida, ninguém pediria um milagre ao escravizado. Na morte, porém, ele se tornou uma espécie de santo popular.

Imagem retrata o desfile de Carnaval em Campinas, durante 2014Arquivo/Prefeitura Municipal de Campinas

A luta pelo retorno dos desfiles

O último desfile oficial das Escolas de Samba de Campinas aconteceu em 2015. Desde então, as quatro escolas da cidade – Estrela D’Alva, Rosa de Prata, Leões da Vila Padre Anchieta e Unidos do Shanghai – lutam para trazer de volta essa tradição.

A Secretaria Municipal de Cultura e Turismo acompanha essa mobilização e trabalho para viabilizar um modelo sustentável para a retomada dos desfiles em 2026. Um dos principais desafios é a gestão de recursos financeiros, já que a antiga subvenção às escolas não pode mais ser praticada, conforme determinação do Tribunal de Contas. Além disso, a falta de prestação de contas de algumas entidades no passado afetou o cenário atual, tornando o caminho ainda mais difícil.

Para 2025, as escolas de samba programarão eventos de carnaval com blocos de rua, garantindo que o samba continue pulsando na cidade. Mas a retomada dos desfiles oficiais exige um novo modelo, baseado no diálogo, na transparência e na sustentabilidade.

Como diz a nota da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo:

“O ressurgimento dos desfiles será possível quando encontrarmos uma releitura da tradição das Escolas de Samba. A simples volta ao que era antes não se mostrava sustentável.”

O carnaval de Campinas já sobreviveu ao tempo, às tragédias e às mudanças. E, assim como a lenda do Boi Falou, continua vivo e resistente

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