Como insetos ajudam a desvendar homicídios, overdoses e abusos sexuais

São Paulo — Um corpo de uma mulher de 58 anos foi encontrado deitado de bruços perto de sua cama dentro de sua casa, em Franca, no interior do estado de São Paulo. A vítima já estava em estado de decomposição avançado, sem ferimentos externos aparentes que indicassem violência. A polícia também não encontrou sinais de arrombamento de portas ou janelas. Associando o primeiro contato ao histórico de doença cardíaca da mulher, os investigadores inicialmente concluíram o caso como morte natural. Mas um fator levou a investigação para outro rumo: uma massa de larvas de moscas na região posterior do crânio da vítima.

No estágio de decomposição, insetos geralmente colonizam primeiro os orifícios naturais, e a presença dessa massa, associada à posição do corpo, sugeriu que o ferimento foi causado pouco antes da morte — não correspondendo a um acidente natural. Com base nisso, as investigações foram aprofundadas, e a polícia encontrou e prendeu um suspeito que conhecia a vítima e que havia sido visto nas proximidades da casa dela no período de sua morte. Ele confessou ter tentado estuprá-la e, ao tentar contê-la, bateu a parte de trás da cabeça dela contra o chão, fazendo-a desmaiar.

Este é um caso que foi desvendado com o trabalho do Laboratório de Entomologia Integrativa (LEI) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A pesquisadora e coordenadora do laboratório, Patricia Jacqueline Thyssen, publicou esse e mais quatro casos no Journal of Forensic Science and Research, em janeiro de 2018. No LEI, são feitas pesquisas que avaliam o tempo de desenvolvimento de larvas de moscas que se alimentam de tecidos animais em decomposição.

“Na natureza, os corpos de animais mortos servem de alimento para uma grande variedade de insetos. Em casos de morte violenta e não esclarecida, os insetos podem ser tão úteis, algumas vezes até mais, quanto outros vestígios deixados em uma cena criminal tais como projéteis, digitais, armas, entre outros”, explicou a professora Patricia Thyssen ao Metrópoles.

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A presença de larvas em regiões específicas do corpo pode revelar ferimentos ocultos e auxiliar perícias criminais

Chrysomya albiceps
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Na natureza, os corpos de animais mortos servem de alimento para uma grande variedade de insetos

Arquivo Pessoal/Patricia Thyssen

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A presença de larvas em regiões específicas do corpo pode revelar ferimentos ocultos e auxiliar perícias criminais

Arquivo Pessoal/Patricia Thyssen

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Chrysomya albiceps

Muhammad Mahdi Karim/Wikimedia Commons

De acordo com a explicação da professora, como os insetos sempre colonizarão os corpos em busca de alimento logo nas primeiras horas após a morte, pode-se usar a informação da idade de uma larva encontrada neste corpo para estimar há quanto tempo uma vítima foi a óbito.

E mais do que isso: em casos onde a vítima foi a óbito por envenenamento ou por uso de drogas, também é possível resgatar a partir de exames químicos feitos com as larvas qual foi a droga ou veneno consumido. E se examinadas com até 12 horas após a coleta em um corpo, é possível recuperar o DNA do autor de um abuso sexual a partir das larvas que se alimentaram em uma região do corpo que contenha secreções sexuais, como o sêmen, por exemplo.

No entanto, a perita Carolina Gonçalves Palanch, do núcleo de Biologia da Superintendência da Polícia Técnico-Científica de São Paulo, explica que o recurso de analisar as larvas para solucionar crimes como esse, embora eficiente, não é o mais empregado na rotina policial. Isso porque a entomologia forense é mais trabalhosa em relação a outros meios já existentes de detectar tais substâncias — como a análise de vísceras e sangue, por exemplo.

“Porém, caso nenhum desses materiais estejam disponíveis e o corpo já estiver em estado avançado de putrefação, a gente pode usar sim larvas encontradas em um cadáver para esse tipo de análise”, disse a perita ao Metrópoles. 

Como funciona

Segundo Patricia Thyssen, de modo geral são coletadas em corpos as larvas de moscas, de diversas espécies. Os protocolos dos peritos criminais orientam a coleta dos insetos que estão se alimentando dos tecidos cadavéricos. De acordo com a pesquisadora, são os imaturos que se alimentam dessa forma, já que as moscas adultas fêmeas que vão até o corpo para colocar seus ovos de modo a garantir o alimento para a prole. Assim que coletadas, elas são colocadas em frascos com álcool, que vai interromper o seu desenvolvimento e preservá-las, e em seguida levadas ao laboratório.

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Além do tempo da morte, larvas podem indicar envenenamento ou até recuperar DNA de um agressor em casos de violência sexual

Apesar da eficácia, a entomologia forense ainda é pouco aplicada na investigação policial em São Paulo
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No Laboratório de Entomologia Integrativa da Unicamp, pesquisadores analisam larvas para determinar intervalos pós-morte

Arquivo Pessoal/Patricia Thyssen

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Além do tempo da morte, larvas podem indicar envenenamento ou até recuperar DNA de um agressor em casos de violência sexual

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Apesar da eficácia, a entomologia forense ainda é pouco aplicada na investigação policial em São Paulo

Arquivo Pessoal/Patricia Thyssen

Lá, os pesquisadores primeiro investem na identificação da espécie a partir do exame da parte externa do corpo do inseto. Isso é importante porque cada espécie tem um tempo de desenvolvimento diferente e outras particularidades que influenciam diretamente na investigação de um caso. A identificação de larvas da família Sarcophagidae, por exemplo, é mais difícil, devido à escassez de descrições dos estágios imaturos dessa família na literatura, o que aumenta um risco de erro no cálculo do intervalo pós-morte.

Em seguida, as larvas são pesadas com balanças analíticas e medidas, para que seja calculada a idade delas e assim determinar há quanto tempo estavam em um corpo. No caso da vítima de 58 anos de Franca, por exemplo, as moscas adultas analisadas em laboratório foram identificadas como Chrysomya albiceps, a mosca-varejeira. O peso delas e o tempo de desenvolvimento corroboraram a estimativa de sete dias de intervalo pós-morte, que já havia sido indicado pelo perito.

De acordo com a perita Carolina Palanch, antes de coletar as larvas, o perito deve registrar as condições ambientais, como temperatura do ambiente e da massa larval, umidade relativa do ar e a quantidade aproximada de larvas presentes. Todos esses fatores influenciam no que elas têm a dizer sobre a dinâmica de um crime.

Além disso, o profissional precisa anotar a localização das larvas no cadáver, o que pode ajudar a identificar ferimentos ou áreas de decomposição natural. Se existirem várias regiões do cadáver com presença dos insetos, eles devem ser estudados separadamente.

Recurso subutilizado

A pesquisadora Patricia Thyssen acredita que o recurso é muito subutilizado no país, especialmente em São Paulo. “A maior dificuldade reside no treinamento de equipes especializadas. No Rio de Janeiro, Paraíba e Santa Catarina, os vestígios entomológicos são amplamente utilizados porque há peritos entomólogos comprometidos com este tipo de coleta e exame”, explica.

Atualmente, se larvas são coletadas em um local de crime em São Paulo, é necessário recorrer a pesquisadores de universidades para que se tenha um exame adequado das amostras, uma vez que não há um órgão da polícia especializado nisso. De acordo com Carolina Palanch, o que dificulta a adoção mais ampla da entomologia forense é a necessidade de conhecimento muito específico sobre o tema.

Aqui no estado, o laboratório da Unicamp que a professora coordena recebe peritos para cursos de treinamento e aprimoramento, assim como amostras para serem analisadas. No último caso, os pesquisadores fornecem um relatório de análise informando a identificação do inseto e a idade, e a partir daí o perito avalia como usará a informação na investigação.

Para avanços na área, a professora elenca algumas ações. “É preciso investir na criação de ferramentas computacionais que ajudem a identificar mais facilmente os insetos; ampliar o banco de dados genéticos como alternativa para identificação do inseto através do DNA; construir protocolos de coleta e análises padronizados e divulgar mais a entomologia forense para que o público entenda a importância sobre o uso da ciência para resolver crimes.”

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