“Será que o atual mito de que indígena é sinônimo automático de preservação seria verdadeiro?”

indígena

“Nem bons, nem antiecológicos, simplesmente humanos”

Depois de muito tempo de crença no mito do bom selvagem, surgido a partir das ideias do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau no século XVIII, parece que atualmente estamos vivendo outro mito: o de que indígena é sinônimo automático de preservação da natureza.

O primeiro mito já foi plenamente derrubado, pois mesmo os “selvagens” americanos, que tanto inspiraram Rousseau, sabe-se hoje que, de “puros e bons”, pouco tinham. Grande parte vivia em constantes conflitos, com nações indígenas guerreando entre si. O canibalismo — ou seja, vencedores devorando os inimigos vencidos — era um ato nada raro.

“Entre os índios sul-americanos, o canibalismo era a maneira de socializar a vingança. Mortos e feridos em combate eram comidos no local ou durante a retirada, enquanto os prisioneiros só seriam devorados mais tarde, em meio a complexos rituais. (…) O sangue recolhido às pressas pelas mulheres mais velhas era passado no seio das que amamentavam, para que até os bebês provassem do inimigo”, conta Paulo Markun sobre esse costume dos povos originários que o conquistador Cabeza de Vaca encontrou na América do Sul no século XVI, no início da ocupação das Américas.

Sabe-se igualmente de lutas sangrentas entre as diversas nações tupis no processo de divisão territorial indígena do litoral brasileiro, ocorridas durante os quase dez séculos anteriores à ocupação europeia do Brasil. Nas florestas de Santa Catarina não era diferente, e a paz nunca reinou por muito tempo. Grupos rivais guerreavam entre si na disputa por espaço e recursos.

Os colonizadores espanhóis e portugueses, por sua vez, ao mesmo tempo que cometiam também suas terríveis atrocidades, impunham aos nativos valores cristãos que eles próprios frequentemente ignoravam. Resumo da ópera: “selvagem” ou não, somos todos humanos, com todas as nossas virtudes, que tentamos cultivar, e defeitos, que tentamos reprimir.

Quanto ao mito atual de que indígena é sinônimo automático de preservação da natureza, ele também não confere — ou melhor, não confere plenamente. Esqueçamos, por ora, os povos originários que os europeus encontraram aqui nas Américas e os povos originários recentes (de poucos séculos) de todo o planeta. Retrocedamos uns 200 a 300 mil anos no tempo e concentremo-nos nos originários de todos os povos originários: os humanos que evoluíram a partir de ancestrais símios na África, os pioneiros de todos nós, de todas as raças atuais que compõem a espécie Homo sapiens.

Enquanto os humanos se desenvolviam como espécie no continente berço de todos nós, simplesmente não existiam seres humanos em nenhum outro lugar do planeta. Todas as demais espécies animais e vegetais viviam “felizes”, livres de nós e dos nossos ancestrais.

Há 70 mil anos, o planeta vivenciava o mais frio e mais seco período glacial. O nível do mar estava muitíssimo mais baixo, o que favoreceu a dispersão da humanidade da África para o restante do planeta. Há consenso de que, entre 60 e 70 mil anos atrás, os primeiros humanos deixaram a África. Há 50 mil anos, avançando até as atuais Índia, Malásia, Indonésia e ilhas, alcançaram a Austrália. Demoraram mais uns 15 mil anos para povoar a Europa, o Oriente Médio e a Ásia Central.

Por volta de 15 a 20 mil anos atrás, os primeiros humanos cruzaram o estreito de Bering e conseguiram chegar à América do Norte e, a partir daí, se espalharam, ao longo dos séculos e milênios, por todas as Américas. Não se descarta a possibilidade de que a chegada às Américas tenha ocorrido também via marítima, em embarcações extremamente rústicas. No litoral sul do Brasil, Vale do Itajaí incluído, a presença de povos ancestrais é relativamente recente: entre cinco e sete mil anos.

No esforço de resumir o assunto, é importante lembrar que, antes da dispersão humana pelo planeta, em todos os continentes vivia uma megafauna fantástica, composta por animais que variavam desde o tamanho de uma capivara até parentes de elefantes com várias toneladas, dependendo do continente ou ilha. O que temos hoje no Brasil e na América do Sul, por exemplo, é apenas uma pálida ideia do que existia antes da chegada dos povos originários.

Enormes mamíferos, como preguiças gigantes de até seis metros, tatus colossais do tamanho de um carro pequeno, bichos enormes parecidos, mas não parentes, dos hipopótamos, animais semelhantes a camelos, tigres-dente-de-sabre e tantos outros hoje completamente extintos faziam a América do Sul pré-histórica se parecer muito com o que se vê atualmente no continente africano em termos de megafauna.

Claro que, para o desaparecimento dessa megafauna por aqui e em todo o planeta, houve a influência das mudanças climáticas. No entanto, cresce entre os cientistas a convicção de que essa avassaladora extinção pré-histórica tem a forte marca do ser humano primitivo. Como nos ensina o biólogo Fernando Fernandez, há fortíssima correlação entre o período de chegada dos humanos e a extinção da megafauna em todo o planeta — desde a Austrália, há 60 mil anos, até a Nova Zelândia, há apenas 700 ou 800 anos. Por todo o planeta, esses enormes bichos se extinguiram quase sempre após a chegada dos humanos.

Em poucos séculos — ou seja, praticamente nada em termos de tempo geológico — essa espetacular fauna foi desaparecendo atrás do rastro da chegada do ser humano mais originário de todos os continentes e ilhas.

O tremendo impacto da humanidade começou, portanto, muito antes do poderoso poder de destruição da civilização atual. A diferença é que os originários dos povos originários não agiram por maldade. Ao contrário da humanidade de hoje — sejam indígenas ou não indígenas —, não sabiam o que faziam. Simplesmente tentavam sobreviver. Sem ter consciência do que faziam, não foram nada preservacionistas. E será que o atual mito de que indígena é sinônimo automático de preservação seria verdadeiro?

O amigo Nélcio Lindner de tantos anos comigo, ainda sem barba, como membros do Clube de Ciências “Professor Frei Fulgêncio Kaupp”, no topo do Morro Spitzkopf em Blumenau. Iniciava-se, naquela época, por inspiração do grande conservacionista blumenauense e empresário Udo Schadrack, o acúmulo de conhecimentos que resultaram, mais de três décadas depois, na criação do Parque Nacional da Serra do Itajaí. Foto do colega do Clube de Ciências, João Carlos Correia, em 06 de dezembro de 1969.

Correção: no “Baú Ambiental” da Semana passada, onde se lê, Clube de Ciências Prof. Lothar Krieck, leia-se Clube de Ciências Prof. Frei Fulgêncio Kaupp. Lothar Krieck foi patrono, três anos depois, de um Clube de Biologia.


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