O mundo digital e a recessão da vida pública (Por João Pedro Pereira)

Pensava-se que o mundo digital seria um catalisador da vida pública. A Internet, com todas as suas declinações, tornaria mais fácil partilhar opiniões, participar civicamente, conectarmo-nos uns aos outros. Para uma espécie que assenta na comunicação, aumentar a capacidade de comunicar iria logicamente resultar em sociedades mais fortes e vibrantes.

Hoje, temos argumentos para dizer que o efeito foi o inverso.

O mundo digital suga-nos a atenção e entrincheira-a em esferas confortáveis de opiniões consonantes. Os algoritmos servem sucessões de vídeos sobre fazer pão ou crochê, ou podcasts de esquerda ou de direita, em sintonia com as preferências de cada um. Se o leitor costuma usar o YouTube, experimente abri-lo sem ter iniciado a respectiva conta e num navegador anónimo; provavelmente ficará espantado com o tipo de vídeos que nunca viu e que o YouTube nunca lhe mostraria.

O resultado disto, apesar da cacofonia das redes sociais, é uma retirada da esfera pública, até no sentido físico – o das ruas e praças que atravessamos (e que frequentamos pouco) todos os dias.

Um estudo feito por um grupo de oito acadêmicos analisou a forma como as pessoas se deslocavam em espaços públicos de três cidades dos EUA (Nova Iorque, Boston e Filadélfia). Compararam vídeos gravados entre 1979 e 1980 com imagens de 2008 a 2010. Concluíram que, embora a percentagem de transeuntes que circulam sozinhos se tenha mantido, o número de pessoas que estavam paradas ou que deambulavam naqueles espaços caiu 14%. A velocidade a que as pessoas se deslocavam aumentou 15%. Isto “sugere que estão a usar as ruas mais como passagens do que como espaços sociais.” Também caiu “drasticamente” o número de grupos de pessoas, indicando “menos interação espontânea e/ou menos uso dos espaços urbanos como pontos de encontros pré-combinados”.

O estudo é parco em especulações sobre o que motivou a mudança (“transformações no comportamento humano, no uso do solo, ou no carácter do espaço”). Em 2010 os smartphones ainda davam os primeiros passos, embora os celulares já fossem onipresentes. Não é preciso uma investigação académica para saber que quem está fisicamente sozinho em espaços públicos está normalmente imerso no seu mundo digital por via do celular, tecnologia capaz de criar redutos individuais em espaços tradicionalmente públicos, como as esplanadas, as salas de espera ou as carruagens dos comboios.

Entabular conversa com um estranho é prática em franco declínio – seja porque nos vamos intrometer no mundo em que a outra pessoa está embrenhada, seja porque temos sempre qualquer coisa para ver no próprio celular. O onipresente dispositivo acabou até com o pretexto mais fácil: “Que horas tem?”. Quando há dias uma pessoa me perguntou as horas numa avenida movimentada (um celular sem bateria?), a primeira reação foi a de arregaçar a manga e mostrar o pulso, para indicar que não tinha relógio. Foi um reflexo que terá ficado dos tempos em que a pergunta era corriqueira. Retirar apenas um dos auriculares quando chega a nossa vez na fila do supermercado também passou a ser uma pseudo-cortesia aceitável.

Mas o mundo digital vai mais além na capacidade de nos retirar do espaço público. Permite os confortos e as distrações necessários para nos encolhermos quando os acontecimentos tornam o que nos rodeia mais hostil. Por exemplo, um ambiente geopolítico caótico ou deslizantes da democracia.

Após a tomada de posse de Donald Trump, o colunista do Financial Times Janan Ganesh argumentou que se assistia “a um grande encolher de ombros dos liberais” (usando aqui liberais como se usa quando se diz “democracias liberais”, embora as iliberais não existam. Era uma passividade resignada por parte daqueles que se opõem ao trumpismo. Observava Ganesh:

“Tem acontecido em todo o mundo desde que Trump conseguiu a vitória em novembro, e é natural. Não é possível estar sempre zangado. Nas autocracias da Europa do século XX, as pessoas de consciência dissidente muitas vezes fizeram o que era conhecido como ‘migração interior’. Isto é, em vez de fugir ou lutar, retiravam-se para as suas vidas privadas à medida que à volta delas o ambiente político se tornava mais sombrio.”

É possível ver o mesmo face à progressão das direitas radicais na Europa. Não é possível estar zangado o tempo todo e muito menos é possível lutar o tempo todo. E o mundo digital oferece o casulo perfeito: as séries na Netflix, os vídeos no TikTok, os videojogos do Steam, as compras da Amazon ou da Temu. Gratificação instantânea à prova de composições parlamentares ou inclinações de chefes de Estado. Nunca foi tão agradável alienarmo-nos.

É o sonho de qualquer autocrata (ou aspirante a autocrata) ter uma grande fatia da população placidamente satisfeita. Há quase um século, Aldous Huxley imaginou uma droga para isso. O nosso admirável mundo digital foi por um caminho diferente, mas o resultado pode acabar por ser o mesmo.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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