Sob gestão Bruno Souza, Florianópolis desmonta assistência social

“Enquanto eu estou aqui tentando tirar eles das ruas, você está no semáforo dando esmolas e ajudando eles a continuarem na rua”, diz Bruno Souza (PL), o secretário de Assistência Social de Florianópolis, em um vídeo publicado em seu Instagram. “O trabalho é meio frustrante, nós temos clínica de reabilitação, emprego, mas poucos querem”, diz aos seus 165 mil seguidores. 

Fora das redes sociais, no entanto, as ações do secretário não demonstram esse esforço. Em pouco mais de um mês à frente da Secretaria de Assistência Social (Semas), Souza promoveu o desmonte da pasta: o Restaurante Popular, um dos poucos equipamentos voltados à segurança alimentar da população vulnerável, foi fechado; a equipe do Resgate Social, que deveria atuar no acolhimento imediato de pessoas em situação de rua, está paralisada e com salários atrasados.

Famílias precisam recorrer à Justiça para conseguir abrigo, já que a Portaria 003/2025 da prefeitura, publicada em 29 de janeiro de 2025, limitou o acesso a equipamentos sociais. A principal “solução” da gestão, a Passarela da Cidadania, vem sendo denunciada por sua precariedade. Instalado na Passarela Nego Quirino, espaço originalmente construído para desfiles de carnaval, o abrigo improvisado foi classificado como um “depósito de pessoas” por um Relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). Lá, famílias são separadas e moradores enfrentam condições insalubres.

Florianópolis concentra mais de um terço do total da população em situação de rua de Santa Catarina. Em números absolutos, o estado possui 11.586 pessoas em situação de rua, enquanto a capital detém 3.725, número que representa um aumento de 63% em relação ao ano passado, que registrou 2.287 pessoas. Os dados são do CadÚnico. 

Antes mesmo de ser empossado, o secretário de Assistência Social gravou um vídeo nas ruas de Florianópolis, oferecendo balas ou bebidas, no que chama de experimento “para entender se as pessoas que moram nas ruas preferem oportunidade ou viver no vício”. Em outro vídeo, ele diz que quer se sentar no banco de uma praça, “mas não dá”, enquanto mostra uma pessoa em situação de rua deitada no assento. Os conteúdos têm milhares de curtidas. 

Pessoas ouvidas pela Agência Pública relataram a falta de acolhimento e o desmonte da assistência social, mas o secretário Bruno Souza diz que “só fica na rua quem quer” e que “não existe miséria e fome na rua”. A reportagem pediu uma entrevista com o secretário Bruno Souza, mas não teve retorno da Assessoria de Imprensa. 

Por que isso importa?

  • Florianópolis tem mais de um terço da população total em situação de rua de Santa Catarina, mas serviços de acolhimento e de distribuição de comida estão com problemas operacionais. Fontes ouvidas pela reportagem dizem que as falhas começaram na gestão do atual secretário de Assistência Social.

Acolhimentos negados

Briana* assistia maravilhada aos vídeos de Florianópolis nas redes sociais. As imagens mostravam oportunidades de emprego, boas moradias, segurança e infraestrutura. Além das lindas praias. Briana, mulher preta de 47 anos, e Lucas*, seu filho de 12, nunca haviam visto o mar.

O cotidiano era bastante diferente no interior de São Paulo. Mãe solo, passava meses lutando para garantir o básico para a família e nem sempre conseguia. Em cada momento difícil, imaginava Florianópolis e o futuro que poderia construir ali. Pegou o filho, algumas mudas de roupa, R$ 500, e partiu rumo à promessa da “ilha da magia”, como é conhecida a cidade farta em belezas naturais.

Às 15h de uma sexta-feira, desembarcou na rodoviária de Florianópolis. Sentia-se empolgada: aquele seria seu recomeço. Primeiro, tentou abrigo em uma paróquia, mas não havia vagas. Em seguida, procurou o posto de atendimento da assistência social na rodoviária. Esperou por horas até receber a resposta: sua solicitação de hospedagem social havia sido negada pela prefeitura. “Disseram que não tinha vaga”, conta.

No fim do dia, recebeu um telefonema da Defensoria Pública Estadual e explicou que o filho era diagnosticado com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), tomava remédios para dormir e tinha pouco dinheiro em mãos. Naquela primeira noite, Briana pagou a pernoite de um hotel próximo à rodoviária, esperando que a Defensoria conseguisse reverter a negativa.

“A gente passava a noite na rodoviária, sentado. Se o meu filho deitasse no chão para tentar dormir, o guarda vinha dizer que era proibido. Ele ficava encolhido na cadeira e eu, acordada”, relembra. Da assistência social, recebia apenas almoço e jantar e, “com a sobra do dinheiro que tinha, comprava um salgado ou um refrigerante para o filho”, diz. “Para mim, não. Eu me mantinha com a marmita.”

Na segunda-feira, uma psicóloga da assistência social os visitou. “Ela disse que eu estava sendo negligente com meu filho, fazendo ele passar por aquela situação, e que acionariam o Conselho Tutelar. Eu tive medo de perder ele”, conta Briana aos prantos.

O medo da separação, somado ao cansaço de dias sem dormir, a fez considerar ir embora, mas não tinha dinheiro para a passagem de volta. A Defensoria tentou conseguir o dinheiro, mas foi um parente distante que acabou pagando. Cansada, frustrada e humilhada, decidiu realizar um dos desejos de Lucas antes de deixar a cidade. “Eu nunca tinha visto a praia. Entrei nela de calça jeans. Meu filho ficou 10 minutos porque precisávamos ir embora”, diz. “Fui só para ter o prazer de dizer que conheci o mar.”

O serviço de Resgate Social de Florianópolis, que atende casos de acolhimento rápido, como o de Briana, foi fechado em 17 de fevereiro. A equipe, composta por assistente social, psicóloga, técnicos de enfermagem e enfermeiros, percorria a cidade buscando quem precisava de acolhimento, oferecendo atendimento inicial e encaminhamento para outros serviços.

Os próprios funcionários decidiram paralisar os atendimentos, pois estão com salários atrasados devido à falta de repasse da prefeitura. “Tem gente com risco de ser despejado por falta de trabalho, gente com insegurança alimentar. Técnicos muito queridos se afundando em dívidas e o repasse não é feito pela prefeitura”, denuncia Victor Mexia, psicólogo e coordenador do programa.

Criado em 2020, durante a pandemia da covid-19, o serviço funcionava como uma extensão itinerante do Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua (Centro Pop).

Fernando*, que vive em situação de rua e faz uso abusivo de álcool há anos, sente na pele o impacto do desmonte. “O Resgate começou a ficar ruim desde que Bruno [o atual secretário] chegou. Eles não olham de verdade a pessoa. Eles marcam o nome, mas não sabem quem é”, critica. 

Acesso a serviços vira caso de Justiça 

Desde 2020, o Hotel 2S funciona como hospedagem social, ou seja, abrigo provisório por meio de contrato com a prefeitura, sendo o único equipamento que recebe crianças. Com o aumento da busca pelo serviço, em 2024 o então secretário de Assistência Social Leandro Antônio Soares Lima criou a Portaria 007/2024, que definiu que somente mulheres e crianças poderiam acessar os dormitórios. Com a chegada do secretário Souza, o uso do dispositivo recrudesceu, segundo fontes ouvidas pela reportagem. 

Em 29 de janeiro de 2025, a Semas, já sob comando de Souza, publicou uma nova portaria, a 003/2025, reafirmando o caráter provisório da hospedagem social e centralizando no secretário, do seu adjunto e/ou no subsecretário de operações assistenciais a decisão de acolher ou não. A norma não especifica, contudo, que critérios de escolha são usados para deferir ou indeferir pedidos.

A reportagem teve acesso a dois documentos que registram encaminhamentos feitos pelo Centro Pop à Defensoria Pública, após a prefeitura negar acolhimento a duas famílias no hotel social — uma família venezuelana, cujo pai tem deficiência visual, e uma mulher grávida com seu marido. Além disso, obteve, na íntegra, a ação judicial movida pela Defensoria, que pedia, em caráter de urgência, o acolhimento do pai deficiente visual e as decisões do Judiciário sobre os casos. 

Os registros comprovam que a gestão municipal não só negou, mas dificultou deliberadamente o acesso à hospedagem social. Todas as cinco negativas ocorreram após a criação da portaria que exige autorização do secretário Bruno Souza, do seu adjunto ou do subsecretário para qualquer acolhimento. 

Um dos casos é o de Carmen*, Santiago* e seus três filhos, que chegaram em Florianópolis em 2020, após fugir da Venezuela por perseguição política. A família usou a hospedagem social no Hotel 2S por curto tempo, até recuperar sua autonomia financeira. Santiago tem deficiência visual e, por conta das graves lesões no olho, tem crises de dores de cabeça e desorientação, necessitando de auxílio contínuo.

Após cinco anos, no último dia 29 de janeiro, a família precisou recorrer à hospedagem social novamente, mas foi impedida: mãe, pai e filhos passaram a noite na rua. O encaminhamento feito pelo Centro Pop à Defensoria, em 30 de janeiro, diz que a equipe técnica “solicitou vaga no Hotel 2S e a gestão da SEMAS negou acolhimento”. 

Após insistência com a secretaria, Carmen e os filhos tiveram o pedido de abrigo aceito no Hotel 2S, mas Santiago não. A justificativa foi a Portaria 007/2024. Não sabendo se comunicar em português e com somente 15% da visão de um olho, o homem passou a noite do dia 30 no abrigo improvisado da Passarela, sem acolhimento individualizado. 

A Defensoria Pública moveu uma ação judicial, em caráter de urgência, pedindo à Justiça catarinense que garanta o acolhimento de Santiago. No documento, as defensoras reforçam que o desmembramento familiar “configura neste caso constrangimento na tentativa de que a família desista do acolhimento em serviço municipal, compelindo-a a adotar outra alternativa sem amparo do Estado, impondo-lhes permanecer em situação de rua para manter o direito essencial à convivência familiar, o que é inadmissível em um Estado Democrático de Direito”. 

Além disso, o texto da ação diz que não “é crível que o Município de Florianópolis despenda recursos, os quais são limitados, para o atendimento dos autores em dois equipamentos distintos, quando poderia acolhê-los em um mesmo serviço. A medida, para além de desumana, reduz o número de vagas no serviço de acolhimento da Passarela da Cidadania, aumenta o gasto ao erário e fere os direitos fundamentais dos autores”, defendem.

Abrigo negado a mulher grávida

O segundo caso aconteceu em 15 de janeiro, quando a Defensoria foi acionada também pelo Centro Pop para intervir na situação de Marta*, uma mulher grávida de oito meses, e seu marido, José*, que tiveram a hospedagem social negada. A reportagem acessou o documento de encaminhamento para a Defensoria que mostra que o pedido foi negado porque a Portaria 007/2024 “não garante a inserção de mulheres gestantes no local”.

Após ação da Defensoria, Marta foi acolhida. José, no entanto, continuou desabrigado. Uma nova ação foi necessária para assegurar sua permanência junto à esposa, uma vez que a gestação avançada exigia seu apoio e cuidados. Além disso, mantê-lo na rua impedia que ele buscasse trabalho para sustentar a família. 

A decisão judicial favorável só veio 16 dias depois, em 31 de janeiro. Mesmo dia em que a Justiça determinou o acolhimento imediato de Santiago no Hotel 2S. Nas decisões, o juiz Reny Baptista Neto escreveu que “o direito ao acolhimento familiar e à manutenção da unidade familiar está consolidado no ordenamento jurídico brasileiro, sendo a separação de seus membros medida excepcional que deve ser devidamente justificada e fundamentada”.

O magistrado destacou que a negativa de acolhimento “contraria esses preceitos, pois impõe desmembramento indevido da família sem qualquer justificativa legítima”. Ressaltou, ainda, que “a prática anterior do próprio serviço de acolhimento permitia o ingresso de genitores, reforçando a provável inconsistência da nova regulamentação”. 

Condições precárias em abrigo 

A Passarela da Cidadania tem capacidade para abrigar 250 pessoas, com refeições, banho, espaço para guardar pertences e lavagem de roupas. Um relatório de uma missão realizada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), em abril de 2024, observou as condições precárias do espaço. 

Um dos pontos alerta para o risco de acidentes ao acessar o espaço, cercado por rodovias de trânsito intenso. “Não há, nas proximidades, qualquer semáforo ou faixa de pedestre para facilitar a travessia para a Passarela da Cidadania, o que, certamente, resulta em acidentes, considerando especialmente o grande número de idosos e de pessoas com deficiência ali acolhidos”, diz o documento.

Em outro trecho, a missão afirma que os dormitórios “são grandes vãos, em que são acomodadas dezenas de beliches, constituindo verdadeiros depósitos de pessoas”, observa. Para os membros do CNDH, “são tantas as pessoas confinadas no mesmo cômodo que, além do risco de transmissão de doenças, não há qualquer individualidade ou privacidade”. 

A situação, já precária, tem ainda um agravante: o Carnaval, que acontece no mesmo espaço. 

O evento aconteceu mesmo com as pessoas abrigadas na Passarela da Cidadania, segundo Roberto, da Rede com a Rua, “uma parte do complexo, que atende a Pop Rua, foi fechado, mas o alojamento foi mantido. As pessoas ficaram ali durante o período dos desfiles”. Ele explica que as alegorias passam a 10 metros de distância dos alojamentos e que no local tem pessoas com necessidades especiais, como “por exemplo, pessoas autistas e pessoas acamadas”. 

Dias antes dos desfiles, a defensora pública Ana Paula Fão Fisher, coordenadora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos (NUCIDH), foi informada pela prestadora de serviços da Passarela que os idosos seriam transferidos para unidades terapêuticas. Para a jurista, que também está à frente das ações judiciais que buscam reverter a decisão municipal dos que têm negado o acolhimento no Hotel 2S, a medida era “completamente inadequada, já que a comunidade terapêutica deveria servir para o atendimento de situações relacionadas ao abuso de álcool e drogas, não podendo de forma alguma acolher pessoas que não teriam essa condição”. 

Tentamos contato com a Semas para entender se alguma medida havia sido tomada com relação ao acolhimento das pessoas em outro lugar, por conta do Carnaval, mas não tivemos resposta. 

Perguntamos à Semas se a Passarela da Cidadania tem capacidade para absorver a demanda das pessoas que não estão tendo acesso à hospedagem social. Em resposta à Pública, o órgão afirmou que “desconhece a falta de acesso ao serviço de hospedagem social” e declara ainda que “a Passarela da Cidadania dispõe de 250 vagas para pernoite, não podendo absorver demandas que ultrapassem esse número, por questões de segurança e comodidade”.

Esse mesmo relatório da missão do CNDH, que observou condições insalubres da Passarela, também recomenda “revogar imediatamente a Portaria SEMAS 007/2024, sobre o uso do Hotel 2S pela população em situação de rua, garantindo o acolhimento dos genitores ao serviço e impedindo qualquer restrição de acesso ao acolhimento quando constatada situação de vulnerabilidade social que exija proteção especial de famílias com crianças e adolescentes”.

Insegurança alimentar

Ao conversar com a reportagem, Fernando*, que vive em situação de rua, confessa que estava havia quatro dias sem comer. “Eu não me alimentei, estava mal, vomitando, pensando que eu ia morrer”, diz.

Em 5 de fevereiro, Bruno Souza publicou um vídeo anunciando o fechamento do Restaurante Popular, justificando que o local se transformaria em um “restaurante para famílias e crianças carentes”. Além disso, as entregas de refeições feitas pelos voluntários em vários pontos centrais da cidade estão proibidas. Devem ficar restritas à Passarela da Cidadania, anunciou em outra publicação.

O coordenador da Associação Rede com a Rua – formada por 20 coletivos, que doa refeições à populações de rua desde a pandemia da covid-19- critica a medida. “Segundo a Secretaria de Assistência, quem for pego entregando refeições na rua primeiro receberá advertência, se reincidir, será multado. À população de rua serão oferecidas refeições na Passarela da Cidadania, que hoje é um caos, não atende nem as pessoas que estão abrigadas lá. A tragédia está anunciada”, diz.

O presidente do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de Florianópolis, Eduardo Rocha, afirma que “a população em situação de rua compõe 85% dos usuários do Restaurante Popular e é uma das mais afetadas pelo encerramento do serviço”. 

O Resgate Social e o Restaurante Popular garantiam, minimamente, uma refeição e um olhar atento. Agora, sem esses apoios, Fernando sobrevive onde pode. “Eu moro onde não mora ninguém”, define. A cidade, que antes lhe oferecia ao menos a chance de tentar, agora parece querer apagá-lo. 

A professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisadora da Rede Penssan Cristine Gabriel, analisa que, “no estado, há uma resistência em discutir a questão da fome que atinge pessoas marginalizadas. Vimos crescer governos extremistas, com práticas conservadoras e higienistas, e, agora, acho que chegou ao auge a separação de quem tem direito e quem não tem direito”, observa. 

Em 18 de fevereiro, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, por meio da Coordenação-Geral do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua, emitiu uma recomendação pedindo a reversão de todas as medidas adotadas pelo novo secretário de Assistência Social. Solicitou também que o próprio ministério “realize, em caráter de urgência, uma missão técnica da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos (SNDH) para monitorar as medidas de proteção à população em situação de rua”.

A prefeitura de Santa Catarina, responsável pela Semas, não respondeu os questionamentos da reportagem. 

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