O estado sou eu (por Gustavo Krause)

Esta é uma das muitas frases que sobrevive à autoria controversa. Foi atribuída a Luís XIV (1638-1715), Rei da França e Navarra e que, por várias razões, poderia fundir-se ao Estado. Herdeiro do trono aos cinco anos de idade, sob a regência da mãe, Ana da Áustria e do Cardeal Mazzarino, reinou de fato e de direito, a partir de 1661 (data da morte do Cardeal) por 72 anos, tendo como fonte do poder absoluto a teoria do direito divino dos reis.

Como monarca sem freios, manejando o poder centralizado, escolheu como sua representação simbólica o Rei Sol. A exemplo dos déspotas, era senhor da vida e da morte dos seus súditos, da paz e da guerra, das cortesãs que desejasse: sangrava o povo com impostos para a ostentação de uma corte corrupta; e manchava de sangue seu reinado beligerante e expansionista. Mal sabia, ou não queria saber: o Rei plantava as sementes libertárias do iluminismo que enxergavam um novo e amplo horizonte de luta por valores universais ainda que desafiados e, frequentemente, desrespeitados.

Ao longo de mais de três séculos, é inegável registrar a prosperidade material e as possibilidades abertas pela capacidade inovadora do conhecimento humano. No entanto, os avanços políticos e o aperfeiçoamento ético não caminharam na mesma proporção. A miséria humana persiste sob diversas formas, porém a mais perigosa e destrutiva é a miséria política que usa as ideias da força com a falaciosa promessa de realizar o bem.

Esta é a sensação que me causa a vida contemporânea sem o pessimismo amargo que somente enxerga catástrofes diante das crises que integram a natureza das grandes mudanças. O importante é estar atento à complexidade dos processos que geram novos paradigmas.

Pressinto escutar expressão “o Estado sou eu” ou “Eu sou o Rei Sol” quando o Presidente dos Estado Unidos, Donald Trump, toma conta da cena política internacional. Sua oxigenada cabeleira, ao balanço de uma afetada linguagem corporal, reluz um brega dourado que veste a gigantesca estátua de Trump, esculpida pela IA, em vídeo postado no dia 26 de fevereiro, anunciando sobre os escombros de Gaza, uma “Riviera do Oriente Médio”. Ou quando, ao vivo, humilha o heroico Zelensky e  opõe um “oceano” aos tradicionais aliados.

Pressinto, todavia, que o simbolismo assumido por Luís XV é pouco para Trump: o Republicano quer proclamar e mostrar ao mundo que o “Estado é Meu”. O Departamento de Eficiência Governamental (DOGE) criado pelo presidente, sob a liderança do bilionário Elon Musk tem objetivos que vão além do corte de gastos, da redução do tamanho do Estado (2,3 milhões de burocratas, com despesas em torno de 7 trilhões de dólares, recrutados pelo critério do mérito desde 1883 com base Ato Pendlton) e do aumento de eficiência do aparelho estatal. É pouco. O grande objetivo é fazer valer o real desejo: “O Estado é meu” e, desta forma, uso quando e como quero.

Com efeito, a vitória de Trump e a tempestade de atos normativos emitem sintomas do que Steven Levistsky (coautoria com Daniel Ziblatt de “como as democracias morrem” e “como salvar a democracia”, 2018 e 2013”) e Lucan A.  Way afirmassem em instigante artigo “A América está à beira do autoritarismo competitivo” (Folha. Ed. 22/02/25).

Em contextos distintos, o “autoritarismo competitivo” não chega a ser um oxímoro. A estratégia dos autocratas não difere: com maior o menor facilidade, eles provocam uma erosão persistente de modo a enfraquecer ou liquidar as instituições que, no seu conjunto, criam o sólido território do Estado Democrático de Direito.

Nos dois últimos séculos, houve ciclos de evolução e regressão das democracias liberais. De fato, a ordem liberal e a economia de mercado não ofereceram respostas que fortalecesse a estabilidade sistêmica e incentivos de aperfeiçoamento ao regime cujos pilares são as liberdades, o pluralismo social e político, eleições competitivas, alternância pacífica do poder e o governo da lei sobre a vontade dos homens.

Neste quadro, emerge o populismo trumpista que desacredita e afronta os princípios escritos na Constituição dos Estados Unidos (em vigor desde 04/3/1789 com sete artigos e 27 emendas), ao perdoar os golpistas de 06 de janeiro; desafiar um federalismo sólido; ignorar o tradicional bicameralismo e ao tornar o Estado uma arma poderosa contra a voz da oposição, a independência do judiciário, a liberdade da mídia e cria a trilionária oligarquia financeira estruturada numa relação promíscua do “capitalismo de compadres”.

No plano internacional, aproxima-se dos autocratas, ditadores, déspotas, propondo alianças que soam falsas ao entoar o hino nacionalista xenófobo “A América Primeiro”, dando sequência ao exemplo dinástico do egocentrismo máximo proclamado por Luís XV : “Depois de mim, o dilúvio”.

 

Gustavo Krause foi ministro da Fazenda 

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