Anistia para quem? A sociedade brasileira e sua seletividade penal

A anistia não é apenas um instrumento jurídico; é também uma construção social que revela as dinâmicas de poder de um país. No Brasil, a noção de perdão coletivo tem sido mobilizada de maneira seletiva ao longo da história, reforçando privilégios e aprofundando desigualdades estruturais. Se no passado a Lei da Anistia (1979) serviu para proteger torturadores e assassinos do regime militar, hoje assistimos a um novo capítulo desse mesmo expediente: enquanto setores da sociedade clamam por anistia aos condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, jovens negros seguem lotando os presídios sem direito sequer a uma revisão processual.

A pergunta que precisa ser feita não é apenas “anistia para quem?”, mas “quem tem o direito de errar no Brasil?” e, mais ainda, “quem tem direito ao perdão?”. O caso de Rafael Braga, condenado em 2013 por portar uma garrafa de Pinho Sol e outra de água sanitária — produtos de limpeza que a polícia interpretou como material para coquetéis molotov — ilustra com precisão a resposta: no Brasil, os crimes não são julgados apenas pelo ato cometido, mas pelo perfil racial e social do réu.

Dados do Monitor da Violência (2023) mostram que 67% da população carcerária do Brasil é negra, um reflexo direto do racismo que orienta as políticas de segurança pública e do encarceramento em massa de pessoas negras e pobres. O Atlas da Violência (IPEA, 2022) revela que, enquanto a taxa de homicídios entre brancos caiu 27,1% nos últimos anos, a de negros cresceu 11,5%, evidenciando que a violência de Estado e a criminalização seletiva seguem critérios raciais bem delimitados.

Agora, vejamos o contraste. O ataque golpista de 8 de janeiro, amplamente registrado em vídeos e fotos, expôs um grupo de cidadãos que, munidos de extrema violência, invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes, quebrando vidraças, saqueando gabinetes e clamando pela derrubada do Estado democrático de direito. No entanto, ao contrário do que ocorre em comunidades periféricas, onde operações policiais resultam em execuções sumárias sob pretextos frágeis, os golpistas querem ser tratados como sujeitos políticos legítimos, não como criminosos.

O discurso da anistia, defendido publicamente por figuras como o ex-presidente Jair Bolsonaro e por manifestações que reuniram milhares em Copacabana, não é um pedido de perdão universal, mas sim uma reivindicação de privilégios históricos. Entre os que exigem anistia, não há campanhas pela revisão das penas de jovens negros condenados por crimes sem provas, nem pela reestruturação do sistema prisional, que mantém 40% dos detentos em regime de prisão provisória (CNJ, 2023). O que se pede, na prática, é a manutenção de uma estrutura jurídica que sempre ofereceu um tratamento diferenciado para crimes cometidos por brancos e negros, por ricos e pobres.

A conivência da sociedade com essa desigualdade não é acidental. A noção de justiça no Brasil não é universalista, mas hierárquica. A impunidade dos ricos e brancos é parte do pacto social que mantém privilégios intactos, enquanto a punição exemplar de negros e pobres reforça um sistema que precisa do encarceramento como ferramenta de controle social. Essa mesma sociedade que se mobiliza por anistia para aqueles que atacaram a democracia é a que defende a redução da maioridade penal para adolescentes negros que furtam um celular.

A seletividade penal não se sustenta apenas na letra fria da lei, mas no imaginário social que define quem deve ser punido e quem pode ser redimido. Se há uma anistia a ser debatida, que seja para aqueles que foram esmagados por um sistema de justiça que nunca lhes deu direito à presunção de inocência. Até que a sociedade brasileira encare sua cumplicidade nessa engrenagem, seguiremos reafirmando um país onde a liberdade e o perdão continuam tendo cor.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.