A mão pesada do STF (Por Hubert Alquéres)

O 8 de Janeiro não foi um simples ato de vandalismo. Tudo indica que fez parte de um plano orquestrado, no qual a invasão das sedes dos três Poderes buscava instaurar um clima de caos que justificasse uma intervenção das Forças Armadas. A necessidade de punir os envolvidos não está em debate — o que se exige é que isso ocorra com razoabilidade, proporcionalidade das penas, individualização das condutas e pleno respeito ao direito de defesa.

Esperava-se do Supremo Tribunal Federal uma postura de sobriedade, observando tais critérios na hora de aplicar a dosimetria das penas, de acordo com a responsabilidade de cada um. Não é o que temos assistido. Na ânsia de dar uma punição com caráter pedagógico e persuasório, a Suprema Corte tem aplicado indistintamente penas altas, até 17 anos de prisão, como se todos os réus tivessem a mesma participação, praticado os mesmos crimes e com a mesma responsabilidade.

Assim, abre espaço para ser criticada de fazer “julgamento coletivo”, sem dimensionar corretamente a participação de cada réu nos atos. Como as sentenças são definitivas pelo fato de se dar na última instância da Justiça, os réus não têm instâncias superiores a recorrer, o que poderia mitigar a pena. Até por ser a única e última palavra ao mesmo tempo, o STF deveria primar pela contenção em sua sentença.

A mão pesada do STF na aplicação por atacado de penas rigorosíssimas gera, inevitavelmente, injustiças, dando munição para a oposição bolsonarista construir a narrativa de perseguição política por parte da Suprema Corte. Diga-se de passagem, o sentimento de que as penas dadas até agora ultrapassaram a razoabilidade é compartilhado no parlamento por um espectro que vai bem além da fronteira do bolsonarismo.

Sintoma disto é o projeto de lei apresentado pelo senador Alessandro Vieira (MDB), estabelecendo que somente quem teve participação relevante, como financiadores ou líderes, em crimes de golpe de Estado ou de abolição do Estado de Direito será enquadrado com maior rigor penal. Se aplicada nos envolvidos do 8 de janeiro, as penas mais pesadas iriam para o chamado “núcleo crucial” e mais alguns líderes e seus financiadores.

Já o “baixo clero” do golpismo que serviu como massa de manobra, invadindo e depredando as sedes dos três Poderes, seria apenado de forma mais branda.

O debate extrapola o parlamento. O tema diz respeito à observância do Estado de Direito Democrático, portanto à sociedade como um todo. Para produzir bons resultados, não se pode ficar prisioneiro da polarização. Nem cair na armadilha de calar-se sob o pretexto de “não fazer o jogo dos golpistas”, com o consequente enfraquecimento do Supremo Tribunal Federal. Em uma democracia madura e estável, nenhuma instância de poder está imune a críticas. Se o STF tem o direito de errar por último, a imprensa tem o direito de apontar os seus erros e a sociedade de discordar, de algumas de suas sentenças.

A extrema-direita carecia de um símbolo, um caso emblemático de fácil entendimento, para dar embasamento à sua narrativa da perseguição política por parte da Justiça. O julgamento da cabelereira Débora Rodrigues dos Santos, autora da pichação da estátua da Justiça em frente ao prédio do STF com a frase “perdeu, Mané”, pode ser a    peça que faltava.

Débora, como outros réus já condenados, foi enquadrada nos crimes de Associação Armada, Tentativa de Golpe de Estado, Abolição Violenta do Estado de Direito, Deterioração do Patrimônio Público. Não há a individualização de sua participação em cada um desses crimes. Seu enquadramento, por exemplo, no crime de Associação Armada expõe o STF ao desgaste, pois não há a menor evidência de que tenha pegado em armas. A não ser que se considere o batom, com o qual pichou a estátua da Justiça, uma arma. Já há dois votos para condená-la a 14 anos, mas seu julgamento foi suspenso em decorrência do pedido de vistas do ministro Luiz Fux.

Como outros réus condenados a penas altas, Débora dos Santos pode ser prejudicada pela duplicação de pena, fenômeno no jargão jurídico chamado de bis in idem – “mais do mesmo”. Esse problema foi levantado em outro julgamento em voto parcialmente discordante do ministro Roberto Barroso. Durante este julgamento, Barroso expressou preocupação com a aplicação simultânea das acusações de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado. Argumentou que, embora sejam delitos distintos, há uma sobreposição significativa entre eles, o que poderia levar a uma penalização dupla pelo mesmo comportamento.

Débora, claro, não estava em um passeio dominical no 8 de janeiro. Sabia o que estava fazendo quando atentou contra o patrimônio público com sua pichação “Perdeu, Mané”. Merece, portanto, ser condenada por meio de julgamento justo e receber pena condizente com os critérios da razoabilidade e da proporcionalidade uma vez que seu crime não tem a mesma gravidade dos cometidos pelos que tramaram a coisa toda.

O julgamento da infâmia – para resgatar uma expressão cunhada pela ex-ministra do STF Rosa Weber- é histórico, talvez o mais importante dos últimos anos. Pela primeira vez, militares da mais alta patente estão sendo levados ao banco dos réus e podem pagar com uma pena do tamanho da gravidade de seus atos, pelos crimes cometidos.

Para uma justa dosimetria, faz-se necessário que o STF não pese a mão no julgamento da chamada massa de manobra do golpismo. Afinal, não se combate o autoritarismo com arbitrariedade — e não se defende o Estado de Direito desrespeitando seus próprios fundamentos.

 

Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação

Adicionar aos favoritos o Link permanente.