EUA usaram Juscelino Kubitschek para apoiar e depois criticar a ditadura no Brasil

O governo dos Estados Unidos acompanhou de perto Juscelino Kubitschek antes e durante a ditadura militar brasileira – a morte do ex-presidente, em 1976, é novamente alvo de investigações pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Inicialmente reconhecido como uma figura subversiva na década de 1960, por recusar-se a retirar a legitimidade do governo João Goulart e de seus planos de reformas de base, nos anos seguintes JK passou a ser percebido como uma ferramenta para o Partido Democrata contrapor a política externa dos republicanos para a América Latina na década de 1970.

Em 20 de janeiro de 1964, um aerograma foi enviado ao Departamento de Estado dos Estados Unidos pela embaixada norte-americana no Rio de Janeiro. Assinado pelo conselheiro de assuntos políticos John Keppel, o informe analisava a entrevista que JK havia dado à revista carioca Manchete que havia chegado às bancas no dia 15 de janeiro de 1964. O grande tema que o diplomata estadunidense destaca partia da seguinte declaração de JK: “O Presidente João Goulart tem encontrado opositores que tudo lhe negam, mas a verdade é que vem conduzindo o país dentro de uma incontestável linha democrática. Presidente de um grande partido, cujas tônicas são as reivindicações populares, tem o dever de se bater por êsses compromissos”.

No comunicado, o conselheiro estadunidense mencionou as “notáveis referências” à questão agrária brasileira, além dos comentários de JK sobre o “comunismo” e sobre o programa de governo que pretendia defender para o pleito de 1965, informando também que o ex-presidente havia declarado que “o PSD [Partido Social Democrático] e o PTB [Partido Trabalhista Brasileiro] tiveram uma origem comum: o pensamento e a ação do Presidente Vargas […]”.

Keppel, a partir do corpo diplomático estadunidense no Rio de Janeiro, o principal dos EUA no Brasil, destacou da entrevista de JK o que era a principal dúvida do governo de Lyndon B. Johnson sobre o ex-presidente brasileiro: o favorito para ganhar as eleições presidenciais no Brasil rompe ou não com o projeto político de Jango?

Por que isso importa?

  • O governo dos EUA foi peça central no apoio para o golpe militar de 1964.
  • A forma como o governo e a mídia do país acompanharam e usaram a figura de Juscelino Kubitschek reflete como os EUA trataram a ditadura brasileira.

Desde os últimos meses de 1963, a maioria dos informes norte-americanos sobre a situação política brasileira tentava descobrir se, em caso de uma derrubada de Goulart, figuras importantes da política nacional e lideranças militares e da sociedade civil apoiariam a ruptura. Questionava-se também se Jango teria apoio dessas figuras se decidisse fazer um “movimento inconstitucional”.

Hoje, graças às bibliotecas presidenciais dos Estados Unidos e às transcrições das conversas dos presidentes John F. Kennedy e Lyndon B. Johnson com assessores e secretários, sabemos que o governo americano estava determinado a promover uma ruptura constitucional no Brasil, porque acreditava que os planos nacionais do governo Jango eram incompatíveis com a sua política externa para o Brasil. É possível também, graças a esses mesmos documentos, determinar que Kennedy, antes de morrer, já havia aceitado que essa ruptura no país poderia ocorrer por vias militares, embora preferisse uma saída civil.

O medo dos EUA e dos militares de um Brasil comunista

A paranoia sobre o Brasil, plantada na Casa Branca, partia do embaixador Lincoln Gordon, próximo de figuras como o então governador do estado da Guanabara Carlos Lacerda, que repetia quase ipsis litteris as críticas extremistas que ele fazia sobre o governo brasileiro.

A política externa vigente nos Estados Unidos nesse período para a América Latina era a Aliança para o Progresso, idealizada por Kennedy antes de sua morte, mas mantida e ampliada pelo presidente seguinte, Johnson. 

No Brasil, nas teatralidades do golpe que tentavam passar um verniz de legalidade àquele processo, JK participou da sessão do Congresso que elegeria o novo presidente do país, por ser à época senador pelo estado de Goiás. O ex-presidente, naquela solenidade, votou pela chapa do então conhecido como moderado e legalista Humberto de Alencar Castelo Branco, junto de seu candidato a vice civil, o ex-ministro da Fazenda do próprio JK, José Maria Alkmin.

Apesar de os golpistas militares terem celebrado o voto de JK naquela ocasião, posteriormente o ex-presidente teve seu mandato cassado e seus direitos políticos, suspensos nas primeiras depurações da ditadura, após o Ato Institucional nº 1. Após essa derrota, ele partiu para um exílio voluntário, visitando cidades dos Estados Unidos, do Canadá e da Europa. Naquele momento, a ditadura permitiu que ele saísse do país.

A redenção de JK na mídia dos EUA

Com a vitória de Nixon para a presidência dos Estados Unidos em 1968, o Partido Democrata entrou em um período de extrema impopularidade e uma espécie de orfandade de projetos, incluindo a política externa para a América Latina.

Nixon, ainda em campanha, havia questionado o que apontava como erros da Aliança para o Progresso, inclusive relatando isso em uma viagem que fez ao Brasil ainda como candidato. Sua declaração, à época captada pela Associated Press do Rio de Janeiro em 16 de maio de 1967, foi: “uma democracia no estilo dos Estados Unidos não funcionará aqui […]. Eu gostaria que pudesse funcionar. Se coubesse a mim escolher um sistema, seria uma democracia no estilo de [Charles] de Gaulle [governante da França], com uma forte liderança no topo e democracia abaixo”. Em outras palavras, Nixon buscava apoio ficando “em cima do muro”: de um lado, evitava defender uma ditadura radical, mas, de outro, amenizava o que acontecia no Brasil valendo-se do medo que os norte-americanos tinham do comunismo. 

Como presidente, Nixon alterou sua abordagem para a América Latina, inicialmente dizendo que os Estados Unidos precisavam afastar-se de sua presença intensa no subcontinente. Entre os planos para fazer isso estava o fim do programa de ajudas financeiras conduzidos pela Usaid – a mesma agência que atualmente está sendo desmontada por Donald Trump e Elon Musk –, que integrava a Aliança para o Progresso, substituindo esse auxílio por uma política de facilitar empréstimos aos países latino-americanos, oferecidos por bancos estadunidenses e europeus, garantidos pelo Tesouro estadunidense.

Nessa época, os jornais estadunidenses destacavam pela primeira vez que o governo se convertia em uma autêntica ditadura – antes, os abusos do início do regime eram apontados pelo trabalho de alguns correspondentes, mas ainda muito relativizados pelos editoriais dos jornais. A cobertura do Ato Institucional nº 5 feita pelo The New York Times, por exemplo, foi determinante para mudar esse cenário, incluindo a reprodução de uma ligação telefônica da sua sucursal carioca, que foi interrompida pelo regime, além de confirmações sobre as detenções de figuras como Chico Buarque, Darcy Ribeiro e, claro, JK.

Com o aparente sucesso dessa nova abordagem de política externa de Nixon, inclusive perante a opinião pública estadunidense, os democratas começavam a buscar alternativas para se contrapor ao presidente republicano. Nesses esforços, a mídia de característica liberal (no conceito norte-americano do termo) passou a servir como uma espécie de foro para os democratas debaterem e construírem seus novos talking points sobre como o país deveria lidar com aliados como o Brasil.

Já com o início da década de 1970, o principal desses foros era a conhecida coluna “Foreign Affairs”, do New York Times. O responsável por essa seção especial sobre geopolítica era Cyrus Leo Sulzberger II, membro da família dona do periódico, que rapidamente se consolidava como um protagonista na criação das repostas democratas aos republicanos e ao então descrito expansionismo ideológico e econômico da ditadura brasileira. A família Sulzberger assumiu o jornal em 1896 e foi a partir daí que o New York Times se tornou internacionalista em temas estrangeiros e “progressista-conservador” em assuntos domésticos, segundo descreve Edwin Emery, falecido pensador do jornalismo estadunidense.

Os congressistas democratas buscavam encontrar nos problemas da América Latina uma via para criticar Nixon, e o New York Times também procurava novas justificativas para o fato de os Estados Unidos serem aliados das ditaduras ao sul. Sulzberger começou então a dar atenção para o lugar onde a Casa Branca dizia estar a sua menor prioridade, a América Latina.

Em 14 de abril de 1971, Sulzberger iniciou a coluna lembrando como o Brasil chegou na situação em que estava. O golpe de 1964 era uma “necessidade” posta por um governo “corrupto” e “ineficiente”, que estava destruindo o país. Havia sido um ato patriótico e honrado derrubar João Goulart. Por que, então, aqueles “libertadores” haviam se tornado ditadores? Para Sulzberger, era a natureza dos homens ao chegarem ao poder. A base para essa resposta era Castelo Branco, que teria dito a De Gaulle que todo ditador latino-americano era um homem “que achava o poder muito prazeroso e a perda de poder muito desgostosa”.

É aí que a figura de Kubitschek passa a ser idealizada como alternativa entre um Jango comunista e os militares da ditadura. O Brasil daquela época não era mais o de Castelo Branco, mas o de Emílio Garrastazu Médici e seu “milagre econômico”. Sulzberger, no entanto, atribuiu a JK a real responsabilidade pelo “milagre”. Ao alçá-lo a esse posto, o articulista não lembrou que o ex-presidente tinha saído do poder com baixa popularidade, nem que tinha apoiado, mesmo que com ressalvas, as reformas de base de Jango, e que fora considerado “subversivo” pelos generais.

Sulzberger queria apontar que políticos como JK eram o que faltava no Brasil. Ele seria então uma espécie de terceira via. Sulzberger não escrevia isso para os brasileiros, porque estes não liam o New York Times, mas para a Casa Branca. JK havia virado um sinônimo de democracia liberal. Era o que faltava à esquerda, onde cresciam os movimentos guerrilheiros, e também aos militares, que abusavam das autocracias, radicalizando outros atores políticos. Para defender essa argumentação, Sulzberger trazia declarações do próprio ex-presidente brasileiro, em entrevista que realizou no Brasil com JK.

Por exemplo, sobre o Chile ter elegido o marxista Salvador Allende, JK teria afirmado: “Haverá um perigo se o Chile se tornar comunista, será uma situação ameaçadora em todos os cantos da América Latina. […] nenhum outro país vai afrouxar seus regimes de direita para voltar à democracia e os regimes de esquerda vão ser empurrados mais ainda à esquerda. Isso, claro, será o nosso fim. Perderemos toda a esperança na liberdade, e até a esperança no retorno da liberdade é algo que deve ser mantido”. Essa declaração do ex-presidente brasileiro funcionou como uma resposta dos democratas à política externa de Nixon para a América Latina – e os republicanos não podiam responder a ela acusando os democratas de serem coniventes com marxistas.

O réquiem de Juscelino Kubitschek

Em 1975, Gerald Ford era o presidente dos Estados Unidos. Nem mesmo o escândalo do Watergate acabou com o poder dos republicanos, ainda que tenha conseguido derrubar Nixon. Os talking points que os democratas criaram para contestar a política externa da Casa Branca conservadora para a América Latina tampouco tiveram muito êxito. Ainda assim, a estrutura de utilizar-se da “Foreign Affairs” como um foro de ideias para o partido, através da pena de Sulzberger, seguia. Nessa toada, o articulista faria sua última tentativa de interferir na política externa dos Estados Unidos para o Brasil, agora com uma abordagem distinta.

Após algumas rusgas que haviam surgido entre a ditadura brasileira e a Casa Branca, especialmente por conflitos econômicos que surgiam desde o governo Médici, se estendendo à administração de Ernesto Geisel, Sulzberger voltaria a visitar o Brasil. Em seu hábito já documentado – até por seus colegas – de fazer jornalismo apenas visitando palácios, Sulzberger voltou a tentar encontrar uma figura de centro faltante entre os polos perigosos da América Latina, o comunismo e o militarismo. Dessa vez, em vez de JK, o articulista encontrou esse personagem na figura do próprio Geisel e de seu – descrito como “liberal” – assessor, o general Golbery do Couto e Silva. Já se falava de reabertura no Brasil, e o articulista defendia que o processo fosse mesmo lento. 

Segundo Sulzberger, se Geisel conseguisse frear os descontroles da direita militar, como dizia querer, o Brasil chegaria ao ponto de centro político que defendeu no passado. Em sua coluna, citou que, para isso, era preciso que Geisel mantivesse um poder autoritário, ao menos por um tempo.

Ao final de sua última passagem pelo Brasil durante a ditadura, em 6 de dezembro de 1975, Sulzberger publica o artigo “Um elefante na cama”, sobre Brasília. Fazendo coro às críticas da ditadura sobre as características marxistas da capital federal, Sulzberger diz que a cidade se tornou um símbolo dos erros do passado – dos erros de JK. Nem mesmo o ex-presidente que a desenhou morava na cidade, ressaltou, esquecendo de mencionar que a ditadura obrigava JK a permanecer no Rio de Janeiro.

Sulzberger não voltaria a entrevistar JK e tampouco se interessou em recordar o papel que havia dado ao ex-presidente anos antes. Kubitschek, uma vez mais, era visto como incômodo aos democratas, dessa vez por julgarem ser conveniente buscar seus contrapontos moderados à linha dura militarista na América Latina – que já tinha Augusto Pinochet governando o Chile – nas próprias filas fardadas. O ex-presidente morreria alguns meses depois, em um acidente de carro na Rodovia Presidente Dutra. No mesmo ano dessa coluna de Sulzberger, JK deu uma de suas últimas entrevistas, à TV Manchete, respondendo às críticas sobre a construção de Brasília e sobre as heranças de seu governo.

Já os diplomatas estadunidenses parecem não ter dedicado tanta atenção a JK nos documentos disponibilizados atualmente sobre o período da gestão Nixon. Contudo, não é possível concluir que comentários e ilações sobre o ex-presidente brasileiro não foram traçados pelo corpo diplomático naquele período, sendo possível que esses documentos somente não tenham sido ainda desclassificados pelo governo dos Estados Unidos. Ainda assim, o seguimento dos movimentos de JK – relatos sobre suas viagens, palestras e outras aparições – continuava sendo enviado à Casa Branca durante esse período.

As retomadas das investigações sobre as mortes de JK e Jango

Em 13 de fevereiro de 2025, o governo federal reabriu as investigações sobre o acidente que matou JK, para tentar entender se houve sabotagem no veículo ou outro tipo de interferência, que poderia indicar que o ex-presidente e seu motorista foram assassinados. Em 2013, o Ministério Público já havia tentado investigar o acidente, sem resposta conclusiva. A circunstância da sua morte levanta suspeitas porque se sabe o quanto a ditadura que dominou o Brasil naquele período odiava Kubitschek.

À época, a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo publicou um relatório que apoiava a conclusão de que a morte poderia ter sido premeditada, contudo a CNV nacional rechaçou essa hipótese. Parte dessa divergência vinha de que o motorista que conduzia o ônibus que colidiu com o carro do ex-presidente, causando sua morte, contou à comissão paulista que havia recebido dinheiro para endossar essa versão dos fatos. 

Menos de quatro meses após a morte de JK, Goulart morreu devido a um ataque cardíaco, em sua fazenda em Mercedes, na Argentina. Também surgiram suspeitas sobre a sua morte, já que a ditadura tinha interesse no seu desaparecimento, assim como no de JK. Em janeiro de 2008, a Folha de S.Paulo publicou uma reportagem na qual o ex-agente de inteligência uruguaio Mario Neira Barreiro aponta que o ex-presidente brasileiro fora envenenado por ordens do delegado Sérgio Fleury, do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), com autorização do general presidente Geisel.

Reportagem da Agência Pública mostrou como o veneno produzido no Instituto Butantan entrou nas suspeitas de envenenamento de Goulart. A apuração mostrou como o instituto foi aparelhado e usado pelos militares brasileiros para produzir e enviar toxinas que foram usadas pela ditadura chilena para matar opositores.

A CNV, instaurada pelo governo de Dilma Rousseff, investigou a possibilidade de Jango não ter morrido de causas naturais, mas não chegou a uma conclusão.

Em 1977 a revista Rolling Stone publicou uma reportagem do jornalista Carl Bernstein, já conhecido pelo caso Watergate, na qual revelou existir uma relação muito próxima entre nomes importantes do jornalismo estadunidense com a Central Intelligence Agency (CIA), e Sulzberger é citado entre eles. Fontes da agência afirmaram, no texto, que o articulista colaborou com informações privilegiadas de fontes de países que ele visitava em suas coberturas, além de permitir que a CIA usasse credenciais jornalísticas e alguns correspondentes do New York Times para conseguir acessos no exterior. Ele negou.

Em sua reportagem, Bernstein aponta que sua fonte na CIA teria afirmado: “O jovem Cy Sulzberger tinha algumas utilidades… Ele assinou um acordo de sigilo porque lhe fornecemos informações confidenciais… Havia trocas, acordos de dar e receber. Nós dizíamos: ‘Gostaríamos de saber isso; se lhe dissermos isso, isso o ajudará a ter acesso a fulano de tal?’ Devido ao seu contato na Europa, ele tinha um Abre-te Sésamo. Pedíamos a ele que apenas relatasse: ‘O que fulano disse, como ele era, está saudável?’ Ele estava muito entusiasmado, adorava cooperar”. A mesma fonte teria revelado que Sulzberger uma vez recebeu um briefing da agência de inteligência e o publicou quase que sem edição em sua coluna no New York Times.

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