Opinião: “Crise ou Reconfiguração? Como decisões históricas moldam o futuro econômico global”

Um mês de Trump: presidente cumpre promessas, mas gera incerteza, avalia economista

Por Fabio Ongaro*

Tenho por hábito tentar compreender os fatos e os raciocínios que estão por trás de decisões — às vezes incomuns — tomadas por quem tem uma visão global e o poder real de influenciar nosso futuro. Digo isso porque, neste mundo cada vez mais interconectado, os reflexos dessas decisões têm impacto direto no meu dia a dia — e no de todos nós.

E acredito que todas as decisões carregam uma razão implícita, moldada por circunstâncias que frequentemente escapam à percepção imediata das pessoas. Estamos habituados a considerar o dólar como a moeda refúgio mundial, um pilar de estabilidade que garante segurança econômica global. No entanto, a história nos ensina que estas garantias podem ser efêmeras. A ruptura de Nixon em 1971, ao desvincular o dólar do padrão ouro, redefiniu a ordem econômica e serve como um lembrete de que mudanças abruptas são possíveis. Hoje, enfrentamos a possibilidade de que, se medidas adequadas não forem tomadas para conter a crescente dívida americana, como as pretendidas por Donald Trump, outra moeda —talvez um ativo digital— poderá assumir esse papel central.

Como destaca Larry Fink, e como eu já venho comentando, o risco de substituição do dólar por moedas digitais não é apenas uma especulação, mas uma realidade tangível se a dívida não for controlada. Fink ecoa o que venho alertando: o status do dólar como moeda de reserva não está garantido para sempre. Assim, qualquer hesitação em enfrentar o déficit pode abrir espaço para que moedas digitais, com sua crescente influência, assumam funções que outrora considerávamos exclusivas do dólar. Isso ressalta a necessidade urgente de ações decisivas para assegurar a posição central dos Estados Unidos no cenário econômico global.

O que (não) é sem precedentes

Nas últimas semanas, tratei da relação estratégica entre as stablecoins e a dívida pública americana. Há tempos os Estados Unidos vêm vivendo acima de suas possibilidades, e a consequência disso é uma dívida que já ultrapassa 120% do PIB — e continua crescendo em ritmo acelerado. Sem ações decisivas, a conta inevitavelmente chegará. Alguém terá que pagar esse preço: talvez a própria população americana, talvez o resto do mundo. Talvez o equilíbrio da ordem global.

Vivemos tempos estranhos, marcados por uma angústia generalizada e pela sensação de que estamos testemunhando acontecimentos “sem precedentes”. A expressão virou lugar-comum. Já era usada em excesso antes — e explodiu de vez desde que Donald Trump assumiu a presidência dos EUA. Tudo o que ele faz aparenta receber esse selo automático de excepcionalidade, especialmente no modo como trata os antigos aliados norte-americanos. Mas talvez devêssemos fazer uma pausa e nos perguntar: será que tudo isso é mesmo inédito?

A história, embora não se repita com exatidão, costuma rimar. E muitas das rupturas que hoje nos parecem inéditas têm ecos em decisões do passado que, à sua maneira, também abalaram as estruturas da ordem internacional. Talvez o que estejamos vivendo não seja tanto o fim de um mundo, mas a enésima reconfiguração dele — com protagonistas diferentes, mas lógicas surpreendentemente familiares.

1971 e o Fim do dólar-ouro: a ruptura de Nixon que redefiniu a ordem monetária mundial

Em 1971, o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, protagonizou um marco decisivo na história econômica contemporânea ao declarar o fim da conversibilidade do dólar em ouro. A medida pôs fim ao sistema de Bretton Woods, que desde o pós-Segunda Guerra Mundial regia o câmbio fixo entre moedas e sustentava o dólar como centro da estabilidade monetária global, atrelado a reservas de ouro americanas.

Durante as décadas de 1950 e 1960, o sistema proporcionava estabilidade sem precedentes, com os EUA exercendo a função de financiador e garantidor de última instância. O dólar, moeda universal, permitia aos Estados Unidos imprimir dinheiro livremente, algo que foi amplamente utilizado para financiar a Guerra do Vietnã. Tanto os governos de Lyndon Johnson quanto de Nixon abusaram desse privilégio, o que gerou inflação global, especialmente na Europa.

A reação veio principalmente da França, que ameaçou exigir a conversão de seus dólares em ouro, forçando Nixon a reagir de forma unilateral: rompeu com as regras de Bretton Woods e tornou o dólar inconvertível. A decisão gerou forte indignação entre os países europeus, considerados traídos pelos EUA. Em resposta, Washington reforçou seu papel estratégico na defesa do Ocidente contra a ameaça soviética, argumentando que os custos militares recaíam quase exclusivamente sobre os contribuintes americanos.

A ruptura de 1971 marcou o fim da chamada “idade de ouro” das economias europeias e plantou a semente para o futuro euro. A frustração com a dependência do dólar levou à criação de projetos como a “serpente monetária”, o Sistema Monetário Europeu e, décadas depois, a moeda única europeia.

O abandono do padrão dólar-ouro também abriu caminho para a flutuação cambial livre e a explosão inflacionária dos anos 70, com taxas que, em países como a Itália, beiraram os 20% ao ano. Ainda assim, o mundo sobreviveu ao choque e o dólar manteve sua supremacia, contrariando as profecias da época sobre seu colapso e o isolamento dos Estados Unidos.

A crise de 1971 permanece como um lembrete de como decisões unilaterais em momentos críticos podem redesenhar a arquitetura econômica global — com ecos que ainda ressoam no cenário atual. Nem sempre decisões disruptivas não são tão “sem precedentes” como pensamos. 

A carta de hoje de Larry Fink

Hoje, Larry Fink publica sua carta anual aos investidores, um documento de 27 páginas com uma observação que certamente chamará a atenção da administração de Donald Trump e do secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent. Fink se pergunta: “O bitcoin pode corroer o status do dólar como moeda de reserva”? Sua análise é sintética, mas direta: “Os Estados Unidos se beneficiaram do fato de o dólar ter funcionado como moeda de reserva mundial por décadas”, escreve Fink. A referência aqui é, em grande parte, à disposição de investidores de todo o mundo em financiar títulos de dívida em dólares com rendimentos relativamente baixos.

Mas, o fundador da BlackRock alerta: “Não há garantia de que isso durará para sempre. A dívida nacional (pública) cresceu três vezes mais rápido que o produto interno bruto desde que o relógio da dívida foi inaugurado na Times Square, em 1989.”
E continua: “Neste ano, os pagamentos de juros sobre a dívida pública (americana) ultrapassarão os 952 bilhões de dólares. Até 2030, as despesas obrigatórias do governo e o serviço da dívida consumirão todas as receitas federais, criando uma dívida permanente.”

E então vem a conclusão de Fink, com um claro aviso à administração e ao Congresso: “Se os Estados Unidos não controlarem sua dívida, se o déficit continuar crescendo, a América corre o risco de perder essa posição (de emissor da moeda de reserva internacional) para ativos digitais como o bitcoin.”

As dificuldades da economia americana

Na carta, Fink cita as dificuldades e tensões do momento na economia internacional e nos Estados Unidos, sem mencionar diretamente Donald Trump e suas políticas tarifárias, mas aludindo ao que está acontecendo: “O protecionismo voltou com força”, lamenta. “Hoje, muitos países têm economias gêmeas e invertidas: uma onde a riqueza gera mais riqueza e outra onde as dificuldades geram mais dificuldades. Essa divisão moldou nossa vida política, nossas escolhas políticas”, escreve o fundador da BlackRock. “A ideia subjacente não expressa é que o capitalismo não está funcionando e é preciso tentar algo novo”.

Fink não concorda com isso e aponta um caminho: fazer com que muito mais poupadores participem do desenvolvimento dos investimentos em infraestrutura que virão nos próximos quinze anos. A BlackRock estima projetos no valor de 68 trilhões de dólares em todo o mundo, envolvendo estradas, energia e outros setores. E está se organizando para oferecer também a pequenos investidores e poupadores o acesso a esses planos.

O otimismo sobre a Europa

Acima de tudo, Fink expressa um relativo otimismo em relação à Europa — algo que até poucos meses atrás não era comum entre os grandes investidores internacionais. Um capítulo da carta se intitula: “Precisamos ser positivos novamente sobre a Europa”

No texto, Fink cita Mario Draghi: “O ex-primeiro-ministro italiano e ex-presidente do Banco Central Europeu destacou que a Europa reduziu barreiras com países fora do continente, mas não entre os próprios países europeus”, lê-se. O paradoxo, segundo ele, é que para uma empresa alemã pode ser “mais interessante operar na China do que na França.”

Mas a conclusão de Fink é positiva, também aqui sem mencionar diretamente o impacto de Trump (que não é citado em nenhum momento da carta) no cenário internacional: “Acredito que a Europa está despertando. Os formuladores de políticas com quem converso — e eu converso muito com eles — agora entendem que os obstáculos regulatórios não vão desaparecer sozinhos. Eles precisam ser enfrentados. O potencial benefício é enorme”, conclui.

Verdades Inconfessáveis

Muito se critica o estilo impulsivo de Donald Trump, mas por trás de seus excessos, talvez haja a consciência de que os EUA enfrentam uma situação delicada demais para ser tratada com sutileza. A hegemonia americana — econômica e militar — exige ajustes duros, pouco populares, e difíceis de assumir publicamente.

Entre suas ações mais polêmicas estão a tentativa de reduzir o endividamento público, a revisão de acordos comerciais para favorecer o mercado interno, a imposição de tarifas protecionistas e o interesse em stablecoins como forma de financiar a crescente dívida americana.

Trump também busca transferir parte dos custos da defesa para os países efetivamente protegidos pelo aparato militar dos EUA — uma lógica incômoda, mas coerente com a realidade geopolítica.

Suas medidas, apesar de controversas, apontam para uma tentativa clara de reequilibrar a economia americana e manter a centralidade dos EUA no cenário global. No fim, talvez suas ideias contenham verdades difíceis de admitir — mas impossíveis de ignorar. São tentativas de curto e médio prazo para voltar a ter um equilíbrio fiscal interno que garanta o mantenimento da centralidade dos EUA no tabuleiro Global.

*Coluna escrita por Fabio Ongaro, economista e empresário no Brasil, CEO da Energy Group e vice-presidente de finanças da Camara Italiana do Comércio de São Paulo – Italcam

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