Clarice Lispector escreveu um dos textos mais célebres e mais reveladores sobre Brasília. É uma das mais belas e impactantes crônicas da mais enigmática das escritoras brasileiras. São escritos que denunciam a estranheza que até hoje qualquer visitante sente ao chegar pela primeira vez à cidade que no próximo 21/04 fará 65 anos.
Numa das muitas entrevistas que fez para a extinta revista Manchete, Clarice quis saber o que o arquiteto achava da tal crônica. Talvez tenha sido a mais inusitada das conversas da já consagrada escritora com o também já consagrado arquiteto. Quem entrevistou Oscar Niemeyer sabe que ele só respondia o que queria, sem grandes compromissos com o que lhe tinha sido perguntado. É o que acontece na entrevista com Clarice. Vejamos:
Clarice pergunta:
— Eu uma vez escrevi: “A construção de Brasília: a de um estado totalitário.” O que você acha dessa minha impressão, Oscar?
— Quando Brasília foi inaugurada comentei no meu pequeno livro Minha experiência em Brasília o seguinte: “Com a mudança da capital, Brasília mudou muito e vemos com pesar que o ambiente se transformou por completo, perdendo aquela solidariedade humana que antes o distinguia, que nos dava a impressão de viver num mundo diferente, num mundo novo e justo que sempre desejamos. Vivíamos naquela época como uma grande família, sem preconceitos e desigualdades. Morávamos em casas iguais, comíamos nos mesmos restaurantes, frequentávamos os mesmos locais de diversão. Até nossas roupas eram semelhantes…”.
Nos 1.335 caracteres seguintes, Niemeyer segue relembrando como era a convivência entre os candangos durante a construção de Brasília. Clarice não passa recibo e volta a citar trechos da crônica:
— Uma vez eu escrevi: “Lucio Costa e Oscar Niemeyer, dois homens solitários.” Também escrevi: “Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que eu gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insônia, veem nisso uma acusação; mas minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil: eles ergueram o espanto deles e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério.” Que é que você acha disso, Oscar?
Niemeyer aproveita a ocasião para mais um pequeno exercício de cabotinismo:
— A sua observação me deixa satisfeito. Meu intuito ao projetar a arquitetura de Brasília foi, antes de tudo, fazê-la diferente e, se possível, plena de surpresa e invenção. Pretendia uma arquitetura que a caracterizasse e, nesse aspecto, sinto-me realizado, vendo que seus elementos arquitetônicos – as colunas do Alvorada, por exemplo – vão se repetindo, utilizados nas formas mais diversas (construções, objetos, símbolos, etc). Um dia, há dois anos, passava por uma rua em Paris, quando vi, surpreso – estávamos no Natal – as colunas do Alvorada construídas em tamanho natural, como decoração do edifício da Kodac [empresa fabricante de equipamento e material fotográfico]. E agradou-me mais ainda ouvir uma vez de André Malraux [filósofo francês] esse comentário: “As colunas do Alvorada são os elementos arquitetônicos mais importantes depois das colunas gregas”.
Segue o baile. Clarice cita mais um trecho da crônica (que só seria publicada dois anos depois, em 20 de junho de 1970, no Jornal do Brasil):
— Por que você acha que escrevi: “Quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um taxi parado. Sem chofer”.
Oscar Niemeyer aceita a crítica contundente, mas defende a parte que lhe cabe:
— Porque Brasília lhe parece uma cidade sem vida. Volto a André Malraux. Quando Le Corbusier comentou que Brasília estava ameaçada de abandono pelo governo de Castelo Branco [presidente da República durante o regime militar], ele respondeu: “Será uma pena! Mas que belas ruínas teremos.”
O que importa a Oscar Niemeyer é a eternidade, mesmo em ruínas, de sua obra.
*As duas crônicas que Clarice escreveu sobre Brasília estão publicadas em A descoberta do mundo, editora Rocco, 1999. A entrevista com o arquiteto foi publicada na revista Manchete, edição de 6 de julho de 1968. A foto é da Passeata dos Cem Mil, quando a população do Rio de Janeiro protestou contra a ditadura militar, em 26/06/1968.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.