Quem acredita na ameaça de Trump? (Por Jorge Almeida Fernandes)

Gaza tem uma longa história, em parte explicável pela sua geografia. Se hoje é um “vulcão político” na Antiguidade foi o grande oásis da região, com uma apetecível costa marítima que sempre suscitou a cobiça de vizinhos e de impérios. Chegou a vez de ser disputada pelo “novo império americano”.

Donald Trump vai transformar a mais trágica fase da História de Gaza numa “Riviera mediterrânica”. O método não é inédito mas trágico: implicaria uma gigantesca operação de “limpeza étnica”. A isto voltarei.

Gaza é uma terra saturada de História. Habitada desde data indefinida por cananeus e filisteus, foi cenário de batalhas entre egípcios e assírios. Em 530 a.C. o persa Ciro conquistou a cidade fortificada. Segundo o historiador Jean-Pierre Filiu (História de Gaza, Bertrand, 2024), a cidade foi saqueada por navios macedônios. Em 63 a.C., o território passou para o Império Romano integrado por Pompeu na província da Judeia. No século IV, os bizantinos sucederam aos romanos. Segue-se o domínio do Egito. Entretanto, o seu vinho, vinum gazetum, era muito apreciado na Europa.

Depois de muitas vicissitudes, foi conquistada por um exército árabe, para em 1517 acabar integrada no Império Otomano, cuja ocupação durou até à Grande Guerra de 1914-18.

Gaza era uma estratégica plataforma giratória, com acesso rápido a Alexandria e ao Cairo, a Jerusalém ou Beirute, e provavelmente Istambul. Após a guerra israelo-árabe e a independência de Israel em 1948, a Faixa de Gaza é ocupada pelo Egito, que a administrará até à Guerra dos Seis Dias, em 1967.

Depois desta guerra, a Jordânia abdica da Cisjordânia e o Egito da Faixa de Gaza, inaugurando-se a era da ocupação israelita, que até hoje dura e produziu as tragédias que todos conhecemos.

É esta a Gaza que conhecemos. Em 1948, tinha 80 mil habitantes a que rapidamente se juntaram 200 mil refugiados, a grande maioria da população, que hoje ascende a 2,1 milhões.

Em 2005, Ariel Sharon fez evacuar, manu militari, os colonatos israelitas da Faixa de Gaza. Após o desaparecimento de Sharon, vítima de um AVC, o seu conselheiro Dov Weisglass explicou, numa entrevista ao diário Haaretz, a lógica dessa retirada. “O significado da retirada é o congelamento do processo de paz. Aquilo a que se chama o Estado Palestino, com tudo o que isso implica, foi indefinidamente retirado da nossa agenda. Esta política de ruptura é como o formol. Fornece a quantidade de formol necessária para que não haja processo político com os palestinos.” Acrescentou pouco depois para justificar o bloqueio de Gaza: “A ideia é impor aos palestinos uma dieta, sem os deixar morrer à fome.”

Era a negação nal dos Acordos de Paz de Oslo, solenemente assinados em 1993, por Yitzhak Rabin, Yasser Arafat e Bill Clinton.

Esta lógica foi perversamente ampliada por Benjamin Netanyahu. Foi a “fábrica de um vulcão” e da vertiginosa escalada de violência que terá o seu desfecho no massacre do 7 de outubro, pelo Hamas, e da destruição maciça de Gaza pelas bombas de Israel.

Mas Netanyahu foi cúmplice do Hamas. Em meados de junho de 2007, os islamistas derrotaram e expulsaram de Gaza as forças da Fatah e da Autoridade Palestina que dirigiam o território. Na véspera, disse ao embaixador americano o general Amos Yadlin, chefe dos serviços secretos militares: “Israel ficaria feliz se o Hamas se apoderasse do governo de Gaza porque o exército poderia passar a tratar Gaza como um Estado inimigo.”

Foi pior. Netanyahu fez acordos tácitos com o Hamas para facilitar o seu financiamento a partir do Qatar e confiou no “pragmatismo” de Yahia Sinwar, baixando a guarda na Frente Sul.

Explicou aos deputados do Likud, em 2019: “Quem quiser contrariar a criação de um Estado palestino, deve apoiar a política de reforço do Hamas e da transferência de dinheiro para o Hamas. Faz parte da nossa estratégia: separar os palestinos de Gaza dos da Cisjordânia.” Tudo isto é conhecido, mas vale a pena relembrá-lo.

Os jornalistas que assistiram à conferência de imprensa de Trump ficaram estupefatos. Escreve a italiana Viviana Mazzi no Corriere della Sera: “Fiquei sem fôlego. O chefe da máxima superpotência, que até 5 de novembro era trave mestra da ordem mundial, anunciava a deportação em massa de um povo e a intenção de se apoderar da sua terra.”

As palavras são delirantes. Interrogado sobre o que acontecerá aos palestinos, respondeu: “Fá-lo-emos da melhor maneira possível. Será maravilhoso para os palestinianos, sobretudo para os palestinianos.” Claro que não se referia às delícias da “Riviera mediterrânica”, mas à deportação. À pergunta se mobilizaria tropas americanas, deu a habitual resposta ambígua: “Faremos o que for necessário.”

Os palestinos não quererão voltar a Gaza, explicou. “Aquele lugar tornou-se um inferno”. É sobre este “inferno” e uma “terra queimada” que Trump sonha em promover uma gigantesca operação imobiliária. Que “negócio” terá em mente? Para já, o delírio desmente o pavor da ameaça.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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