Tempos autoritários (por Gaudêncio Torquato)

Uma onda conservadora se espraia pelo planeta. Os Estados Unidos da América, que abriga a maior democracia ocidental, começam a descer o elevado pedestal, onde, por décadas, se apresentava para o mundo como a Terra das Liberdades. A imagem é captada pela visão da Estátua da Liberdade, um dos maiores cartões postais do mundo. A tocha e a tabuleta com a Lei da Independência dos EUA, que a deusa Libertas exibe na mão direita, acima da cabeça, era o signo da esperança de milhões de imigrantes que chegavam ao Porto de Nova Iorque, a porta de entrada da Nação protetora, onde iriam refazer suas vidas. A Pátria americana deixa de vista como a terra da promissão.

Hoje, o maior país da América do Norte vira as costas aos imigrantes que lá aportaram e ainda aportam. De berço mais celebrado da democracia, o país de Lincoln passa a ser a referência de Nação que já não acolhe aqueles que pretendem viver o sonho americano. Passa a ser visto como território do medo e da perseguição. Imigrantes fogem das praças e dos parques, temendo sua detenção por polícias que invadem residências para identificá-los e prendê-los. Tempos dolorosos de uma era que se abre, sob a exposição midiática de centenas de decretos-lei, que parecem o traduzir o sentimento do empresário do entretenimento guindado a um dos mais altos cargos do planeta: “eu mando, eu faço, eu ordeno que a Ucrânia e Rússia façam um acordo de paz, só eu tenho o direito de impor taxas escorchantes aos países que exportam para os EUA”.

É triste constatar. Os EUA fecham as portas para o mundo. Seu dirigente governa com o coração. Donald Trump dá mostras de governar apenas para uma parcela da população, os que nele votaram. Mais parece um guerreiro vingativo, a punir adversários e a fechar os olhos para o eleitorado que ainda o vê como o inventor do slogan: você está demitido. Como conjugar as necessidades de populações em busca de um novo habitat com as demandas de um eleitorado radical e de uma população que se enrola na bandeira do MAGA- Make America Great Again (Torne a América Grande Novamente)?

O que está por trás de tanto desatino de um outsider da política? Tentemos enxergar alguns fatores, a começar pelas promessas não cumpridas da democracia, nos termos assinalados por Norberto Bobbio. O filósofo italiano, em sua obra O Futuro da Democracia, faz um diagnóstico cortante: a democracia falhou no cumprimento de seu ideário. Não cumpriu a promessa de dar aos indivíduos o papel de protagonistas da vida política, colocando em seu lugar partidos, corporações, grupos. Os interesses da Nação dão lugar aos interesses do neocorporativismo.

Diz mais Bobbio: as oligarquias continuam a dar as cartas. A participação do cidadão comum no processo democrático é cada vez menor. Forma-se um poder invisível, um Estado informal, que age nas malhas burocráticas, ao contrário da expectativa de que o Estado formal teria condições de combater com vigor as máfias que agem nos subterrâneos da administração pública. Vejam o caso brasileiro. Nunca foi tão largo o império de gangues que traficam drogas e armas: o PCC (Primeiro Comando da Capital), a maior organização criminosa do Brasil, teria movimentado nos últimos tempos cerca de R$ 10 bilhões, sob a gestão de dirigentes que transformam seus cárceres em escritórios do crime.

Bobbio lembra mais uma promessa não cumprida pela democracia: a educação para a cidadania. Sem a lição de virtudes, os cidadãos se tornam reféns da apatia. Fogem da política.

A esses compromissos abandonados, somam-se as mazelas das políticas neoliberais, como a desigualdade econômica, a repressão aos movimentos sociais e o aumento do desemprego, fatores que acabam exigindo maior presença do Estado no cotidiano. Sob este cenário, o Estado autoritário acaba se impondo, guiado por governantes arbitrários e estruturas burocráticas ineficientes. Trump é o paradigma desse tipo de gestor.

Que desafios hoje se apresentam? Como equacionar posições tão antagônicas, como Estado autoritário, liberalismo, eliminação de desigualdades sociais, extinção do corporativismo?

Este dilema está na pauta do dia, ensejando nas nações democráticas uma guinada à direita. No seio da maior democracia ocidental, seu dirigente assume ares ditatoriais. O mesmo ocorre em países europeus, como a França, e na Argentina, onde Javier Milei assume a posição de líder maior do conservadorismo na região.

E por que essa guinada ocorre? A explicação pode ser essa: a direita opera com objetivos precisos, enquanto a esquerda está sem rumos. A social-democracia, no centro do arco ideológico, por sua vez, fecha seu ciclo experimental, após sobreviver por décadas nas nações europeias. Por aqui, a modelagem social-democrata deixa marcas e uma grande vítima, o PSDB. Hoje, um partido sem votos.

As marcas social-democratas fazem parte do arsenal mercadológico do lulopetismo, ancorando-se em projetos sociais, como o Bolsa Família, o Vale Gás, o Pé de Meia etc. É claro que o PT jamais vai admitir que fez ou faz um governo à moda tucana. Continua a defender seu viés estatizante, como pode se ver na gestão do Lula 3. Um exemplo? O presidente não conseguiu nomear o economista Guido Mantena na Vale do Rio Doce, porém emplaca o ex-ministro no Conselho Fiscal da Eletrobrás.

Em suma, o Estado liberal é um sonho de ampla parcela das forças do mercado, dos setores empresariais, dos setores produtivos. No curto prazo, não teria condições vingar. Qual seria sua moldura? Um abrangente programa de privatização de estatais, menor intervenção do Estado na economia, corte no cipoal fiscal-tributário, enxugamento da burocracia.

Ora, esses ingredientes só teriam chances de surgir em um cenário de expansão industrial, equilíbrio fiscal e demandas sociais atendidas. Não é o caso. Para tanto, o país exigiria dos governantes um crescimento acima de 4% ao ano, criação de 8 milhões de empregos, eliminação do déficit crescente da Previdência, pagamento de uma dívida pública de R$ 7,5 trilhões, implementação da reforma agrária e alta arrecadação de impostos e tributos. Uma tarefa para mágicos ou ditadores. Ou seja, o Estado liberal no Brasil é uma utopia.

 

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor

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